O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Ah! non credea mirarti: Maria Callas no cinema

A exposição sobre a grande cantora não veio ao Brasil, porém o filme de Tom Wolf, "Maria by Callas", "Maria Callas em suas próprias palavras", chegou aqui um ano depois do lançamento.
O filme tem como princípio apresentá-la a partir de suas entrevistas e de cartas, algumas inéditas, que são lidas por Fanny Ardant, a célebre atriz que a interpretou no "Callas Forever", filme de Zeffirelli.
A escolha das cartas foi, na realidade, bem estreita; nenhuma das que enviou ao Meneghini, o ex-marido, por exemplo, foi citada. As entrevistas para a tevê não incluem aquela, "L'invitée du Dimanche", de 1969 com Visconti e Pierre Desgraupes, em que ela fala dos problemas vocais que havia enfrentado e a tinham feito interromper a carreira. No entanto, é recuperada uma entrevista, a mais citada ao longo da exibição, em que ela (como em outra, dada a Bernard Gavoty em 1964) explica que há duas mulheres, a Maria e a Callas, que possuem, no entanto, a mesma base espiritual.
Trata-se de uma opção. A versão inicial do filme tinha quatro horas. O que foi escolhido para ficar não trata muito de música, na verdade, e do repertório que ela ajudou a redescobrir e da nova maneira de interpretá-lo; compreendo a crítica de Fernando-Joseph Meyer, que detestou o resultado.
No entanto, o filme funciona, creio, por tentar jogar luz, com base nas cartas e imagens inéditas, mais em Maria, a pessoa privada, do que em Callas. A infelicidade da trajetória pessoal da cantora, que acaba por abreviar sua carreira artística, não deixa de emocionar, mesmo que o retrato seja inevitavelmente lacunoso. David A. Lowe, no livro Callas - as they saw her, de 1986, chegou a afirmar que seria impossível uma biografia íntima de Callas, uma história da mulher atrás da lenda, pois ela seria inacessível.
O filme preocupa-se em criar uma narrativa em ordem cronológica com algumas licenças, embora a escolha dos fatos apresentados seja bem incompleta (por exemplo, o sensacional emagrecimento não é mencionado, ou disputas com outras cantoras), e eles sejam alinhados sem muita explicação. Por exemplo, aparecem imagens filmadas do diretor Luchino Visconti e do tenor Giuseppe di Stefano (para mencionar somente um dos diretores cênicos com que ela teve alguns de seus maiores sucessos, e o tenor com que ela mais gravou) sem que haja nesse momento indicação de seus nomes, tampouco explicação sobre esses artistas e sua relação com Callas.
Apesar disso, "Maria Callas em suas próprias palavras" forja uma narrativa convincente em seus próprios termos: uma artista genial que a) começou a estudar bem cedo sua profissão e passou por dificuldades (muito maiores do que o filme sugere); b) tornou-se uma grande estrela, porém vítima de injustiças da imprensa e do meio musical; c) conheceu um célebre empresário grego, e eles apaixonaram-se; d) deixou gradativamente sua carreira e acabou perdendo a coragem de apresentar-se em público; e) foi traída pelo homem que amava e, para voltar à ativa, fez um filme, sem cantar, com Pasolini, "Medea", um papel que já era, como ela mesmo diz, uma culminação e um fim (com efeito, ela jamais faria outro); f) fez uma turnê que seria sua despedida do público; g) seu grande amor retorna, o casamento dele tendo naufragado, mas morre logo depois (o filme nada diz, mas ele foi afetado por miastenia); g) ela, deprimida, falece repentinamente aos 53 anos, quando ainda se preparava para retornar à ópera.
Callas era uma artista muito original, e por isso continua, pelo que li, a ser a cantora de ópera que mais vende discos no mundo, quarenta e um anos depois de sua morte, quando tantos colegas de geração se tornaram meros nomes, ou foram esquecidos.
Ela foi muito combatida: se estava certa, a crítica, a imprensa e os outros músicos, animados por outras concepções, mais antiquadas, do que significava o drama musical, deveriam estar errados, e ela foi alvo de ataque de todos esses setores; não por acaso, as imagens filmadas de seus grandes anos na Itália não passam de flashes: apresentações como o Macbeth, de Verdi, no Scala de Milão, ou a Lucia di Lammermoor, de Donizetti, em Nápoles foram filmadas pela televisão, mas apagadas para que outros programas fossem gravados por cima, como se fazia com tudo que não se achava ter valor histórico.
Por essa razão, seus anos de celebridade, antes de 1958, são mostrados no filme com meros flashes, muitos deles de bastidores ou de aplausos no fim de apresentações, ao som de uma das gravações de estúdio mais impressionantes que ela fez, o "Bolero" de I Vespri Siciliani, de Verdi, com o mi sobreagudo no final: extensão e agilidade extraordinárias que, ao contrário de outros cantores, não se reduzem a um fim em si mesmo, pois estão a serviço da expressão. Realizando as indicações da partitura, Callas aponta para além da música e sabia habitar de sentido até mesmo as pausas. Vejam, por exemplo, este começo da ária do último ato de Don Carlo, de Verdi (ela não está no filme): https://www.youtube.com/watch?v=g4R0ROFxLsk
Boa parte dessas pequenas passagens filmadas de Callas nos anos 1950 foi colorizada no filme de Tom Wolf. Os originais são todos em preto e branco, inclusive a "Casta diva", da ópera "Norma", de Bellini, que ela interpretou em sua estreia na Ópera de Paris, com uma fraca execução do coro, apesar de estarem todos os cantores (menos a solista, claro) com as partituras na mão.
Um momento interessante, bem no início do filme, é o dos flashes dela em Chicago cantando a entrada da Butterfly, de Puccini (o filme não o diz, mas a jovem Leontyne Price assistiu Callas nessa produção, em Puritani e Norma na mesma cidade e, maravilhada, decidiu dedicar-se à ópera). Não temos, infelizmente, o som dessa apresentação; no entanto, em alguns momentos, consegue-se coincidir a breve cena de entrada da personagem com a gravação de estúdio que ela fez com Karajan.
Temos apresentações completas filmadas de ópera de outros grandes artistas da época; de Callas, a maior de todos, nenhuma. O mais próximo disso é o segundo ato da Tosca, de Puccini, em Londres, em 1964, seu penúltimo ano em ópera. O filme mostra a cantora interpretando a ária, "Vissi d'arte", enxertando um aplauso falso no fim (a apresentação ao vivo não foi interrompida nesse momento).
Foi a imprensa italiana que decidiu destruí-la quando ela momentaneamente perdeu a voz, doente por causa da falta de aquecimento, durante o inverno, na Ópera de Roma, e não completou a apresentação de Norma em 2 de janeiro de 1958. Inventa-se que ela decidiu não continuar a récita para insultar o presidente italiano e o próprio país. Algumas pessoas acharão estranho que uma cantora de ópera cancelar uma apresentação se torne a principal notícia de jornais no mundo, mas tal era a celebridade de Callas e os ânimos e controvérsias que ela despertava. Era a época em que, para explicar a importância da China, o príncipe do Camboja afirmou para o jornal Le Monde: "Em resumo, a China é como a Callas" (isso não está no filme, porém).
Ópera, especialmente a italiana, é algo muito passional. Tanto que ela recebeu diversas ameaças de morte na Itália. Quando voltou ao Scala de Milão, poucos meses depois, havia policiais até no palco.
Sergio Segalini (no livro Callas: les images d'une voix) vê nesse escândalo mundial o começo do fim da carreira de Callas, e Tom Wolf também o trata assim. Ouvimos, para enfatizar essa virada, "Addio del passato", da Traviata, que Callas cantou em Lisboa em 1958. Essa récita subsistiu integralmente em áudio; passagens do segundo e do terceiro atos, em vídeo.
No fim do mesmo ano (1958; a legenda em português do filme erra indicando 1953), ela foi despedida do Metropolitan, e as declarações dela, na época, sobre a "rotina" e os baixos padrões artísticos daquele teatro eram bem verdadeiras (a situação hoje é muito distinta; James Levine, desde os anos 1970, elevou em muito os padrões musicais). Novo escândalo. Outro maior viria, porém, depois de alguns meses: a imprensa mundial entrou em polvorosa em razão do romance com Onassis e da separação do marido italiano em 1959.
Em 1957, o filme não mostra, ela já havia tido muitos problemas: entre eles, havia sido traída pelo Scala de Milão por conta de apresentações em Edimburgo e foi ameaçada de não poder mais cantar nos Estados Unidos, em queixa movida pela ópera de San Francisco simplesmente porque ela teve problemas de saúde e não pôde aparecer nos ensaios de Lucia. Callas cancelou poucas apresentações em sua carreira e foi tratada com uma severidade imensa quando o fez, além de ter sido alvo contumaz do que hoje se chama de fake news. Em "Os grandes anos", a seção escrita por Gerald Fitzgerald no volume Callas, dele e de John Ardoin, o autor cita o tenor Jon Vickers, que aprendeu com Callas muito sobre o palco, "mas também como se pode distorcer a imagem pública de um artista. Era uma companheira formidável".
Entende-se que ela tenha desistido de lutar. Mas, sem luta, não há arte, ao menos neste gênero. O filme mostra o início de apresentação dela na Grécia, em 1964, com piano, cantando "Voi lo sapete, o Mama", da Cavalleria Rusticana, de Mascagni; Eu nunca tinha visto aquelas imagens: ela confessa ao público que fazia meses que não praticava o canto (nesta ligação, temos apenas um filme mudo dessa ocasião; nesta outra, o áudio do início da ária; o filme também não mostra o trecho completo).
Da mesma forma que um maratonista não pode ficar meses sem treinar, um cantor lírico não pode ficar inativo: os músculos e a respiração se ressentem. René Fleming, creio que com razão, aponta o problema de apoio como a principal razão do declínio vocal de Callas. O filme não trata disso, no entanto lembro que muitos atribuem o problema ao emagrecimento radical que ela sofreu, mas sua amiga e colega, Giulietta Simionatto, grande meio-soprano, acreditava que as raízes eram bem anteriores: na Grécia, ainda adolescente, Callas cantou Cavalleria Rusticana; Tosca, aos 18 anos, algo que nenhum professor de canto recomendaria hoje. Depois, interpretou Tiefland e Fidelio! Se não tivesse viajado para os Estados Unidos, ainda teria interpretado a Senta de Wagner... Com esses papéis pesados, assumidos tão cedo, ela teria comprometido o diafragma, o que explicaria a vacilação temporária no registro agudo mesmo durante seu auge vocal, que se tornou constante de 1960 em diante, época em que passou a viver com Onassis.
No cruzeiro do milionário grego, conta Zeffirelli em sua autobiografia, não havia piano: o companheiro da maior cantora não gostava de ópera nem de ouvi-la praticando. O declínio vocal certamente foi acelerado por isso, além das diversas doenças que ela teve, que mal são mencionadas no filme.
Paralelamente a isso, ela perdeu a coragem. O barítono Tito Gobbi, que esteve ao lado de Callas nas suas últimas apresentações de Tosca, e com ela gravou essa ópera duas vezes (bem como outras,  foi o barítono com quem ela mais trabalhou em estúdio), e não é mencionado no filme, disse que Callas parou não por causa da voz, e sim dos nervos, e é o que ela confessa nas cartas que são citadas no filme.
"Maria Callas em suas próprias palavras", vale, enfim, pelo magnetismo da cantora, os flashes tão sugestivos, as árias filmadas ao vivo. É grande o impacto de sua voz na sala de cinema. Felizmente, o som dos concertos nos anos 1970 não foi reproduzido.
Além das que mencionei, aparecem as árias "Vieni, t'affretta!", de Macbeth, em Hamburgo em 1959, sem o recitativo, provavelmente cortado por Wolf no filme porque ela emitiu mal o dó agudo nesse trecho, estando muito resfriada na ocasião; "Ah! non credea mirarti" da Sonnambula em 1965 para a tevê francesa (também, no filme, sem o recitativo, provavelmente por razões de tempo); a "Habanera" da Carmen em concerto Londres em 1962.
Esse impacto é o que faz suspender o juízo crítico. Não importa que o filme não esteja à altura da sua personagem, nem mesmo consigo imaginar um cineasta que seria capaz de tal façanha. Da primeira vez que o vi, não consegui nem mesmo ler os créditos, pois, enquanto eles correm, do outro lado da tela vemos Callas cantar "O mio babbino caro" com a regência de Prêtre para a tevê francesa em 1965, e não é possível prestar atenção em mais nada enquanto ela recria o mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário