O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
domingo, 31 de outubro de 2010
Néstor Kirchner e duas mortes entre a memória e o terror
Eu estava em Florianópolis quando ocorreu a morte de duas pessoas que viveram em trincheiras opostas do direito à memória e à verdade: Romeu Tuma, antigo delegado-chefe do DOPS/SP, polícia política do Estado de São Paulo, e Néstor Kirchner, ex-presidente da Argentina, que dirigia, quando morreu, a Unasur.
Estava no Seminário Direito e Ditadura, muito bem organizado pelo PET de Direito da UFSC, onde tirei a foto acima (http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/10/evento-seminario-direito-e-ditadura-na.html).
No dia 27 de outubro de 2010, eu iria proferir uma palestra sobre direito e segurança nacional, a partir da análise de documentos do DEOPS/SP. Ao ser informado do acontecimento, incorporei à apresentação mais um documento, em que certo banco agradecia ao então delegado pela ação na repressão à greve, comunicando o comparecimento dos trabalhadores e sua jornada de trabalho. A questão social continuava sendo, como se dizia na República Velha, uma questão de polícia.
Ao lado, vê-se outro momento do cotidiano da repressão política no Brasil: receber correspondência da Anistia Internacional dirigida a presos políticos do Presídio Tiradentes. A fonte do documento é o Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP.
No dia 28, morreu Néstor Kirchner. Deve-se lembrar que ele impulsionou fortemente as políticas de memória (ao contrário de Menem, que as sabotou). Durante o seu governo as leis de anistia argentina foram revogadas, e ele propiciou as condições políticas para tanto, o que o distingue tremendamente do atual presidente brasileiro.
Para homenageá-lo, li no sarau do evento da UFSC, no mesmo dia, um poema de Julián Axat (sobre quem escrevi aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/07/o-poeta-e-jurista-julian-axat-nasceu-em.html), que imagina um pacto entre dois poetas assassinados pelo terror de Estado na Argentina, Francisco Urondo (1930-1976) e Miguel Ángel Bustos (1933-1976). O poema foi publicado em médium (poética belli) (Buenos Aires: Paradiso, 2006). Eis a minha tradução, que sairá, espero, em uma futura antologia:
pacto entre F. Urondo e M. A. Bustos (Pacto maior)
encontraram-se
e o pacto foi
que dessa noite
nesse impossível lugar
surgisse
o destino final da poesia
então
convocaram
os poetas caídos
os assassinados
os que ficaram cantando sozinhos
os que em alguma vez empunharam a palavra justa
todos se fizeram presentes
a brindar com suas armas-taças
para que nada seja em vão
para que o oco que separa
a nós deles
eles de nós
não possa ingressar
de novo nas palavras
O próprio Julián Axat, por sinal, homenageou Néstor Kirchner com um poema de Joaquín Areta, outro autor, assassinado pelo terror de Estado, que Axat vem recuperando na coleção Detectives Salvajes: http://coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com/2010/10/lds-recuerdan-al-ex-presidente.html
Na postagem, pode-se verificar que o próprio Kirchner lê o poema no vídeo indicado.
Acabo de ver que Flávia Cera, uma das conferencistas do Seminário (com um ousado trabalho sobre as políticas do corpo e a Tropicália), escreveu também a respeito, referindo-se aos recentes julgamentos dos acusados de crimes contra a humanidade na Argentina: http://www.culturaebarbarie.org/mundoabrigo/2010/10/para-que-nao-se-esqueca-para-q.html.
Para que não se esqueça, é preciso travar a batalha pelo significado do que passou. Para tanto, a pesquisa histórica é fundamental, mas não basta: parte desse significado é jurídico, por isso os juristas e políticos que advogam a impunidade fazem um desserviço para a questão.
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