Esta entrevista deveria ter saído numa revista que encerrou atividades. Foi dada em janeiro de 2009, por carta.
Tortura e Metafísica: Entrevista com Alberto Pimenta
Alberto Pimenta nasceu na cidade de Porto em 1937. Foi Leitor de Português em Heidelberg de 1960 a 1977 e aposentou-se em 2007 como professor de Linguística na Universidade Nova de Lisboa. Sua ética insurrecional durante o salazarismo levou-o ao exílio na Alemanha de 1963 a 1977.
Sua obra múltipla, que abarca o ensaio, a poesia, o teatro, a ópera, happenings, atuações no rádio e na tevê, guarda esse perfil de insurreição e se aventura por temas geralmente pouco explorados na lírica portuguesa, como a ONU, as guerrilhas, o panóptico, o Nordeste brasileiro... A preocupação com a inovação formal nunca está ausente, e o levou à poesia visual (entre outros livros, pode-se lê-la em Verdichtungen, Viena: Splitter, 1997) e a seu grande estudo O silêncio dos poetas (última edição: Lisboa: Cotovia, 2003), publicado originalmente na Itália, em que analisou, entre outros movimentos, o concretismo brasileiro.
No Brasil, teve publicados o Discurso sobre o filho-da-puta (Rio de Janeiro: Codecri, 1982 e Rio de Janeiro: Achiamé, 2003) e a antologia A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek, 2004). Esta entrevista foi concedida a Pádua Fernandes, organizador dessa antologia.
Vários poemas seus falam dos horrores da guerra e do fascismo. Como tomou consciência desses problemas em Portugal durante o salazarismo?
Horrores sim, tomei conta dos horrores da guerra (neste caso, colonial, mas tanto faz), provavelmente de modo mais directo e intenso que os portugueses que nela não participaram. Em Heidelberg havia um hospital especializado em tratar lesões de guerra (próteses etc): lá conheci vários soldados portugueses cegos e sem braços, a quem uma granada tinha rebentado as mãos. Nem sequer tinham sido atacados: estavam a aprender a atacar.
Fascismo foi sempre para mim um termo demasiadamente técnico, que envolvia muitos fenômenos de modalidades distintas no que toca ao homem, inclusive nas várias culturas: Suécia, Uganda etc. Fascismo há um: o italiano (questão linguística e de estilo). Na Alemanha houve outro, tal como em Espanha, ou na França, ou em Portugal etc. O fenômeno comunista foi também diferente nos vários países do ex-Leste. A Alemanha Oriental recebia os imigrantes do Leste, como a Ocidental os do Ocidente, e era entre eles a mais rica.
Creio que o fascismo habita a maioria dos homens, sob formas próprias de época e de cultura e de função social. Conheço muito poucos homens que não sejam fascistas, isto é, que não se entreguem eles ao poder dum grupo para esmagar o poder doutro grupo.
Um dos poemas em que aborda a guerra colonial, prestidigitação, trata justamente disso: “nas caras/ vêem-se dois olhos ou não./ um nariz ou não. uma boca ou/ não./ duas orelhas ou uma só./ entre as camas circula o / enfermeiro. de resto nesta/ secção as visitas são proi/ bidas.” Ele é de 1973, escrito, pois, durante o seu exílio na Alemanha, que se estendeu de 1963 a 1977. Em 1960, já estava na Universidade Heidelberg, como Leitor de Português. Como se deu a sua escolha universitária pela Germanística?
A escolha da Germanística (que acabou por me levar ao exílio) aconteceu por exclusão.
Descartando as Ciências ditas Exactas (uma mentira que se vai actualizando, e usando o seu fascismo próprio para criar centrais, empresas e vender tecnologia empacotada), descartando também essa outra ciência exactíssima chamada Direito (que amarga ironia para o torto, como, p. ex., a banana), descartando as Ciências Românicas (que são como chuva no molhado ou, mais bonito e com Shakespeare, são como adoçar mel com açúcar), rejeitando a mentira mais ou menos mitológica e feminina da História, e a putéfia da sua madrasta Filosofia (a de 18 tetas como a porca), abdicando do esforço ingente de tentar compreender o incompreensível do passado clássico, sobrava a Germanística, com os seus delírios.
Como aprender alemão e os ditos delírios leva mais de uma dúzia de anos, e como já sabia português o suficiente para dizer apropriadamente “Que Merda!”, só me restou o exílio! Aprendi que até ser homem é uma coisa relativa. Não me ajudou muito a viver, talvez a sobreviver, que para nós, homens, ao contrário nas minhocas, tem de ser aprendido.
O que esperava dos happenings Homo Sapiens (1977), em que ficou trancado numa jaula ao lado dos macacos no Zoológico de Lisboa, e Homem Vende-se (1991), em que ficou amarrado dentro de um saco, com placa “Homem vende-se. Trata: Divisão de Recursos Humanos do Estado”, em frente à Igreja dos Mártires em Lisboa? As reações do público, que foram gravadas, nos dois casos oscilavam entre racismo (“Ai o preto, coitado, isto é um preto.”), a ignorância (“É o homo sapiens, é o homem da selva.”), o preconceito de classe (“O aspecto dele é que me confunde. Se tivesse ar andrajoso, ainda estava bem.”) e a indignação (“A mim dá-me vontade de chorar, país miserável.”).
O que eu esperava da operação Homo Sapiens foi realmente o que sucedeu, só que eu esperava-o mais geral, menos particularizante ao caso daquele homem. Afinal, apesar de ver a pele do outro a arder, tudo como na literatura da palavra: muito interessante, mas ainda bem que não é comigo. O caso daquele homem bizarro, ou o caso bizarro daquele homem é o caso daquele homem. Mais tarde, na réplica Homem Vende-se, a hipótese foi actualizada: é cinema ou publicidade, que é mais ou menos o mesmo. O importante foi sempre distanciar-se: o Outro é Outro. Mais longe um bocadinho: o homem não é um animal, ou eu pelo menos não sou.
A intenção geral da performance e do happening, despertar para o oculto sob as aparências, já passou de todo. O contrário é que conta: as aparências. Mas não foi sempre assim? Do que é que nos queixamos afinal?
Em Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc, 2005), pode-se ver que a adaptação da sua voz à lírica árabe como uma atitude política (“Contra quem é isto feito?/ A batalha entrou na minha casa/ E nos meus olhos.”), de por-se ao lado do povo invadido?
Na Marthiya de Abdel Hamid não creio que tenha adaptado a lírica árabe... como? Usei apenas o seu tom repassado da presença amável e insubstituível da natureza. A verdade é que julgo que apenas assim me tornaria credível, que tornaria credível o que eu dissesse (de dentro para fora) e nunca panfletário e declamatório em diatribe, à maneira ocidental (de fora para dentro). Não se vê como no caso da Gisberta eu me tentei meter dentro dela, apesar do uso do “tu”? Foi a amabilidade da escrita de Abdel que mais me incomodou, como incomodou o prazer interior da Gisberta. É sempre fácil voltar a diatribe contra o autor, deixando o tema entre dois fogos. Aristóteles ensinou. Tudo, de resto.
Esse é o assunto de Indulgência plenária (Lisboa: &etc, 2007), livro sobre o assassinato da transexual brasileira Gisberta Salce Júnior na cidade de Porto, morta por afogamento em um poço depois de três dias de tortura em fevereiro de 2006, por um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José). O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada. A vítima era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Nesta alusão a Shakespeare, vemos “Vida e morte de mãos dadas/ morte/ ignominiosa como esta vida/ ignominiosas/ como tranças molhadas a boiar/ ambas”). Pergunto como o crime e o “perdão” judicial dado aos assassinos suscitaram sua indignação em poesia.
Creio que todos continuam convictos de que o homem é um animal metafísico, muito especialmente os que torturaram e assassinaram Gisberta, que estudavam numa oficina católica. Seria a voluntária mudança de sexo que os levou a ver nisso uma provocação inaceitável contra a pré-destinação divina? Xenofobias de todo o tipo, diferenças insuportáveis. De qualquer modo, isto sucedeu sem p. ex. a adrenalina e o medo da morte que há na guerra. É uma monstruosidade tal que nem Homero e Shakespeare juntos lá chegariam. Eu fiquei na parte mais baixa dos calcanhares, e senti-me também pisado, condição para a capacidade da escrita, que para mim se tornou uma missão.
Como concebe a ética do artista? Ela é diferente da do indivíduo?
Creio que a ética do artista só poderá ser no mais alto grau possível a ética do indivíduo-artista. Vale para Céline e para Picasso. O resultado da qualidade estética pode ser independente da ética, mas não o é do lugar que desempenha na história da escrita humana. Dificilmente se poderá aceitar uma escrita pública que não incite cada um a procurar o espaço de liberdade que lhe cabe sem qualquer espécie de impedimento.
Como vê atualmente a literatura brasileira?
A riqueza do Brasil em literatura, que vai do oral à escrita mais requintada em jogo paranomásico, creio que tem estado muito confinada em si mesma, naquele fenômeno de grupo tão europeu que se autodegladia, sem se elevar como no grande momento da Semana de Arte Moderna.
Para terminar, lembro de seu Discurso sobre o filho-da-puta (Lisboa: Teorema, 1977 e 2000); como bem escreveu, ele está em todos os lugares: no trabalho, na família, na escola: “o filho-da-puta conduz sutilmente à greve de fome aqueles que outrora executava publicamente; o filho-da-puta em tempos chamava escravos aos que hoje chama emigrantes.” E nos meios de comunicação?
O “filho-da-puta” (termo próprio para o homem social) é aquele que não deixa fazer, ou então aquele que faz (leis, guerra etc.). Como o não deixar começa na própria estrutura da língua e no seu ensino, a performance era um modo de se opor a isso. Mas a performance está a perder o lugar, em detrimento da televisão e da publicidade, que são reforços do ensino atrás definido. Publivisão e telecidade? O ciclo fecha-se, o homem volta a atirar dardos ao inimigo simbólico desenhado na areia.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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