O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Um voo negro: Nuno Ramos e a vida


A incorporação da vida nas artes plásticas normalmente dá-se sob a égide da representação com os materiais e suportes que se tornaram usuais: mármore, tinta, bronze, tela... Veja-se, ao lado, uma versão do famoso quadro Agnus Dei de Francisco de Zurbarán (1598-1664). O cordeiro que será sacrificado é também o corpo que se oferece ao pintor, e o corpo assim criado almeja a vida eterna.
Outra coisa é sair desse regime e buscar incorporar a vida na obra de arte, com o uso de seres vivos e materiais biológicos. Embora se esteja mais próximo da presentificação, não se sai completamente da representação: o corpo nu do artista, exposto, ainda será o corpo nu e mais outra coisa.
Em um texto de alguns anos atrás, escrevi sobre a morte da matéria na obra literária de Nuno Ramos: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/09/ele-calaa.html:


Nuno Ramos, em análise da obra de Hélio Oiticica, outro grande artista plástico brasileiro, comentou: “Não se deve estranhar, portanto, se numa descrição genérica o trabalho de H.O. puder ser tomado como a entrada progressiva do corpo na obra” [3]. A hipótese deste trabalho é justamente a oposta: a poesia de Nuno Ramos realiza a retirada progressiva do corpo e suas paixões para deixar apenas a matéria inorgânica, inanimada. E, nisso, ele faz o oposto de sua obra plástica, em que o inorgânico pretende ao animado; como conseqüência, poeta e artista plástico, em Nuno Ramos, estão num jogo especular no qual, com as mesmas imagens, as duas artes realizam movimentos opostos e configuram uma teoria estética própria.

Não logrei ver, de Nuno Ramos, a obra Bandeira branca, na Bienal de São Paulo de 2010, pois ela foi alvo de protestos e de proibição judicial, contendo dois urubus de cativeiro. Houve oposição de militantes ecologistas, contrários a cativeiros em geral, e também de ecofascistas. Em ataque à obra, um destes rasgou-lhe a tela e pichou "Liberte os urubu", o que demonstra como um artista tão articulado pode gerar ódios dos seus dissemelhantes.
Aqui, há um pequeno vídeo anterior à volta dos urubus a seu lar: http://interartive.org/index.php/2010/10/nuno-ramos-bienale-sao-paolo/
Nesse mesmo lugar, Nuno Ramos conta algumas das inverdades que lhe foram imputadas durante a campanha para a destruição de sua obra.
Bandeira branca já havia sido exposta em 2008 em Brasília sem causar tumultos, o que talvez seja um sinal do destacado patamar de São Paulo na caretice nacional. É curioso lembrar que Nuno Ramos, que conseguiu licença do IBAMA para expor as aves e manteve-as sob cuidado diário de veterinário (e, assim, com um acesso a serviços de saúde totalmente superior à de quase toda população brasileira) preocupou-se muito mais com o bem estar das aves e não os tratou como se eles fossem tinta e tela, matérias inanimadas para a arte, porém boa parte desses militantes empregou-os dessa forma, instrumentalizando-os como simples material de propaganda.
(A propósito, o uso instrumental de animais verifica-se até mesmo em culturas não ocidentais; em nome de um suposto biocentrismo, por exemplo, dever-se-ia proibir que índios caçassem? A visão ingênua dos ecofascistas - que distingo dos militantes da ecologia - parece-me trair um profundo etnocentrismo.)
Não é novo o uso de animais em obras de arte, e o que Nuno Ramos fez não tem a radicalidade de obras de Beuys (inclusive seus projetos ecológicos). Mas temos aqui um uso interessante de animal que faz uma ponte entre os vivos e os mortos, entre o orgânico e o inorgânico, o que é um dos problemas permanentes da obra de Nuno Ramos, tanto plástica quanto literária.
O uso de três canções na instalação (a música é frequente nas obras do autor, que também escreve sobre o assunto - ver Ensaio geral - e cria nesse campo, visto que é um compositor de música popular, com uma interessante parceria com Romulo Fróes), Bandeira branca (claro), Boi da cara preta e Carcará parece-me autorizar a comparação dos urubus de Nuno com os de Tom Jobim.
Em 1975, Tom Jobim lançou um de seus grandes discos, Urubu, um texto brilhante na contracapa, que começa destacando a majestade do urubu: "Jereba é urubu importante como, aliás, todo urubu. [...]/ Na verdade não és culpado de nossa devastação [...] ministro de duas corcovas, só tu sentas à mesa com o rei."
Tom Jobim (o ávido leitor de poesia, e autor de letras muitas vezes melhores do que as do poeta Vinicius de Morais), em um movimento intertextual com o albatroz de Baudelaire, fala da dificuldade do urubu em mover-se no chão e o chama de "Eterno vigia de um tempo imperecível." O que ele guarda? "A vida era por um momento. Não era dada. Era emprestada./ Tudo é testamento."
Mesmo na obra luminosa de Tom Jobim, que apresenta uma imagem de Brasil oposta à visão sombria que Nuno geralmente expõe, o urubu faz-nos lembrar que a vida está sempre em xeque. Essa noção deve perturbar visões idílicas do meio ambiente e do Brasil.
Lembro agora de outro grande artista brasileiro, Hélio Oiticica, de sensibilidade muito diferente da de Nuno Ramos (que, no texto sobre Bandeira branca, não deixa de relembrar que faz antipenetráveis, ao contrário das obras participativas de Oiticica). Parece-me que Nuno está em diálogo com Tropicália, obra que Oiticica considerou, na época, a mais antropofágica da arte brasileira:


O penetrável principal que compõe o projeto ambiental foi a minha máxima experiência com as imagens, uma espécie de campo experimental com as imagens. Para isto criei como que um cenário tropical, com plantas, araras, areia, pedrinhas [...] Ao entrar no penetrável principal, após passar por diversas experiências táteis-sensoriais, abertas ao participador que cria aí o seu sentido imagético através delas, chega-se ao final do labirinto, escuro, onde um receptor de tv está em permanente funcionamento: é a imagem que devora então o participador [...] (trecho de "Tropicália", depoimento de 4 de março de 1968, que pode ser lido em COHN, Sergio; COELHO, Frederico (org.). Tropicália. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 99 e 101)

As coloridas araras de Hélio! Bandeira branca teria sido o enterro (já póstumo) dessa tentativa de reconstruir o Brasil, oficiado por urubus? Não pude ver para conferir. Mas o sentido do urubu no texto "Pantomima" de O mau vidraceiro (último livro de Nuno Ramos) parece zombar da antropofagia.
A vida também é problematizada nas obras de Nuno Ramos que estão no momento expostas no MAM do Rio, que também está a abrigar uma série de trabalhos, de vários períodos, de Waltércio Caldas. É possível que essas obras não sejam proibidas, mas, de qualquer forma, convém se apressar para vê-las no MAM do Rio de Janeiro.
Strange fruit alude à célebre canção, imortalizada por Billie Holiday, que canta os corpos dos negros torturados e assassinados, pendurados em árvores no sul dos Estados Unidos.

Na obra homônima de Nuno Ramos, substituiu-se a "guerra racial", que é uma das configurações da biopolítica para Foucault, pelo acidente, novo estatuto da vida humana: são aviões que parecem ter caído sobre árvores. Esses aviões são corpos, dele pendem sucedâneos de soro fisiológico. A marca da canção aparece nos instrumentos musicais deitados.
Em Verme, obra que reforça a ligação de Nuno Ramos com Augusto dos Anjos, temos duas gigantescas esferas marrons (como a anterior, a estrutura é de um duplo) com duas projeções: no início, dois atores leem, separados e suspensos em sala imensa, um texto sobre o verme.

A leitura alterna, musicalmente, as formas de cânone e de antífona. A projeção, em seguida, muda para um casal que, das preliminares, passa para o ato sexual enquanto interage com músicos que tocam ao redor.
Minha preferida, porém, foi Cachorro morto. Na foto, vemos que a instalação se compõe dessa curiosa lápide dupla e um vídeo, que mostra um corpo de um cão atropelado à margem de uma estrada. Nuno Ramos chega de carro, deixa um gravador ao lado do corpo e vai embora. Vê-se então o corpo e ouve-se um texto na voz de Nuno Ramos. Temos aqui a tentativa de o corpo morto do cachorro ser o corpo da voz dele, e uma espécie de compaixão na morte do animal, que é também um sinal do lugar do artista.
Uma lápide dupla: nas faces internas, vê-se, com dificuldade, que está inscrito o texto lido por Nuno.
Esse caráter quase religioso da relação que a obra de Nuno Ramos mantém com os animais (também na literatura, e O mau vidraceiro confirma-o) torna estranho que logo ele tenha sido o alvo da ira dos ecologistas. Repito que, além dos militantes da ecologia, que desejam acabar com os cativeiros e zoológicos, também houve os que foram movidos por um certo ecofascismo, que ecoa não o caráter quase sagrado com Nuno Ramos trata a vida animal em suas obras, e sim uma intolerância religiosa, que tem grassado neste período eleitoral, mesmo em setores que reivindicam representar uma soi-disant social-democracia.
Caráter quase sagrado? Pois fazer o corpo ingressar na obra significa falar da morte, este outro nome da vida eterna, em um nível mais premente do que na representação do Cordeiro de Deus. E talvez seja isso que tenha chocado, mesmo inconscientemente, aqueles que rejeitaram Bandeira branca, supondo agir em nome da vida.

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