O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 6 de março de 2017

30 dias de canções: A loucura, Schumann e Andersen

30 dias de canções

Dia 20: Uma canção que destrói o sentido 

"Der Spielmann" [O violinista], de Robert Schumann sobre poema de Hans Christian Andersen, traduzido do dinamarquês para o alemão por Adelbert von Chamisso. Ela foi composta em 1840.
Eu não tinha muita ideia do que escolheria para esta categoria, que criei a partir da original "uma canção que tem muitos significados para você", que achei um tanto sem sentido porque deveria abranger todos os dias do desafio. Parece-me claro que uma canção que tivesse poucos significados não deveria estar em dia nenhum, a não ser que houvesse algum para música ruim.
Pensei em alguma canção que mostrasse um processo de enlouquecimento, ou que tivesse esse processo como princípio formal. Tinha que ser Schumann, portanto, que mais de uma vez escreveu sobre esses estados da alma. 
Aqui, Dietrich Fischer-Dieskau a interpreta ao vivo com Hartmut Höll: https://youtu.be/AzrPWoSOxQI?t=7m40s.
A partitura dos cinco Lieder sobre poemas de Andersen pode ser baixada nesta ligação.
A primeira estrofe define a situação do casamento em uma cidade pequena. O vinho está tão vermelho, mas a noiva está branca como a morte.
Na segunda, sabemos que ela está realmente morta, mas para aquele que ela não esqueceu, e que está na festa tocando violino suficientemente alegre.
Na terceira, o violinista se comporta de maneira estranha e pressiona o instrumento junto ao coração, como se também o quebrasse em milhares de pedaços.
A quarta começa com o comentário de como é triste morrer assim, com o coração ainda jovem; exclama-se que não se quer mais assistir a isto, a cabeça está girando.
Na última o discurso perde aparentemente conexão. É melhor traduzir da tradução de Chamisso:

Quem mandou vocês me apontarem com o dedo?
Ó Deus, protegei-nos misericordiosamente
Para que ninguém seja tomado pela loucura.
Eu mesmo sou um pobre músico.

As frases parecem desconexas, mas todas servem perfeitamente para retratar a situação: o próprio narrador é o músico e o homem que, provavelmente, amou e não foi amado. O que ele terá feito no casamento? Terá realmente estado lá? Em algum momento, o amor foi recíproco?
O texto não responde a essas questões. A música... Ela parece girar em falso, com as mesmas frases sendo repetidas em estado cada vez mais alterado (são mais deformações do que variações). O primeiro verso da última estrofe, em que o narrador interpela aqueles a quem está contando a história, soa como ameaça exatamente por seu caráter descosido com a frase anterior.
Depois disso, a prece irrompe como total surpresa, tanto no texto quanto na música, que muda de andamento até o final calmo e piano. O instrumento, no fim, parece também não reencontrar mais os fios da história e a música termina no grave. Parece-me uma assinatura da loucura.
Dietrich Fischer-Dieskau, bem mais jovem do que no vídeo, gravou uma caixa Schumann com Christoph Eschenbach. "Der Spielmann" está muito bem lá. A interpretação que mais gosto, por ressaltar as descontinuidades musicais e a instabilidade do narrador, é a de Anne Sofie von Otter com Bengt Forsberg, no impressionante disco Schumann de ambos, por causa da variedade de ataques (da cantora e do pianista) e de cores que a cantora recria na voz.
Em 1842, o músico enviou as canções ao escritor, dizendo que talvez parecessem estranhas, como os poemas lhe pareceram à primeira vista, mas que ele tinha encontrado uma forma não usual para musicá-los. De fato. Ouçam a intensidade de outra dessas canções, "Der Soldat", que também está próxima da loucura: https://www.youtube.com/watch?v=7PtKAl8LM_4. Nessa canção, o único amor que o soldado teve é conduzido para ser executado; vejam a expressão do barítono ao dizer que, do pelotão, todos erraram, comovidos, e só ele acertou o condenado, e no coração: https://youtu.be/7PtKAl8LM_4?t=2m15s.
A história da composição desses Lieder pode ser lida no portal da gravadora Hyperion, que reuniu todos os Lieder de Schumann em projeto do pianista Graham Johnson: http://www.hyperion-records.co.uk/dw.asp?dc=W3129_33106. Stephan Loges, nessa gravação, interpreta bem a dupla Schumann/Andersen.
Schumann, infelizmente, morreu louco. Tentou matar-se antes jogando-se no rio Reno, como Virgina Woolf faria depois, no rio Ouse. No caso do músico, a origem do problema foi a sífilis, o que foi confirmado com a publicação de seu prontuário em 2006 por Aribert Reimann. 
Ao contrário da escritora, ele não teve sucesso na tentativa de suicídio e passou o resto da vida em um asilo; internado em 1854, morreu em 1856. 

Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha

Nenhum comentário:

Postar um comentário