O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 3 de março de 2017

30 dias de canção: Amin, Garfunkel e outros pássaros

30 dias de canções

Dia 18: Uma canção na qual você gostaria de ter nascido 

"Curruíra", de Beth Amin e Jean Garfunkel. A música foi gravada no disco "Poesia à toa", creio que de 2009 (o encarte não informa a data de gravação): https://www.youtube.com/watch?v=6pPTz7xZuOw
Quando imaginei esta categoria, inspirado no dia do desafio original "canção do ano em que você nasceu", não sabia bem o que escolher. Deveria optar por uma canção que tivesse uma dimensão utópica? Já que a utopia, por definição, não existe, e desejamos que ela nasça...
Creio que "Curruíra" possui essa dimensão, e não é óbvia. Aqui, pode-se ver a compositora interpretando ao vivo: https://youtu.be/8D4Gh1R72DM?t=30m5s.
Joana Garfunkel, cantora que é filha de um dos compositores da canção, gravou-a e escolheu-a para título do seu disco: https://www.youtube.com/watch?.v=CTwgRYyNeeUEla e Beth Amin cantam na mesma tonalidade, mas adotam formas diferentes de finalizar a canção.
No vídeo ao vivo, Amin diz que Garfunkel quis letrar a música por ela lembrar "Chovendo na roseira", de Tom Jobim. Eu penso nesta passagem específica da música, e talvez por isso ele tenha escrito o verso da "chuva de verão que dá e passa": https://youtu.be/8D4Gh1R72DM?t=33m23s.
A obra de Jean Garfunkel é bastante conhecida; a de Beth Amin, menos, o que é uma perda para os que apreciam a música brasileira, pois ela pode sustentar a comparação com Jobim.
Esta canção conjuga natureza e poesia, o que é tremendamente atual na atualidade das políticas prosaicas de destruição que tomaram o país e predominam tanto à direita quanto à esquerda, e cujos crimes são premiados por liminares judiciais e aditivos contratuais de milhões ou de bilhões.
Este é o país da devastação.
A canção não trata da degradação, no entanto; sua terra é a daquela dimensão utópica, onde "o medo/ é só mais uma assombração". 
A curruíra, irmã, nessa canção, de Cora Coralina ("E canta tua sina/ Como a Cora Coralina"), é a própria poesia, que sabe que tudo passa, mesmo a primavera e o "frio da alucinação".
A referência à literatura não é nada gratuita, o que às vezes acontece em algumas alusões literárias em música. A referência sustenta-se em razão dos versos de Jean Garfunkel e por Beth Amin ter buscado, já há alguns anos, conjugar sua obra à de poetas brasileiros como Annita Costa Malufe e Álvaro Faleiros, e estrangeiros: Alfonsina Storni e Florbela Espanca.
A terra desta curruíra é a da dimensão utópica, o que significa, evidentemente, que ela pisa nos ares. O animal foi bem escolhido. 
A própria música de "Curruíra", em seu movimento de ascensão, parece querer negar a gravidade, inclusive no sutil decrescendo do final da gravação da compositora, no arranjo de Yaniel Matos. Creio que a vocalização de Joana Garfunkel no final da canção atende a esse mesmo espírito.
Naquele decrescendo, temos o "passarinho": de fato, uma pequena utopia, a de sabermos passar com leveza. Não nasci nela e, se tentar atingi-la, creio que não saberei incendiar o suficiente para o que pede o segundo verso: acender o espaço.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita


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