Em antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008), não mais disponível, publiquei a resenha abaixo do livrinho etnocêntrico e equivocado de Alex Ross, que depois foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras como O resto é silêncio. O incauto crítico foi para a FLIP e foi obrigado a desdizer-se pelo público, segundo li na imprensa.
Lançaram mais um livro dele, também no Brasil, mas não tive curiosidade para ler. Hoje, acrescentaria à resenha que Villa-Lobos disse anos antes de John Cage que Beethoven estava errado.
Senseless ears: a música do século XX segundo Alex Ross
Pádua Fernandes
The rest is noise: Listening to the twentieth century (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2007), primeiro livro de Alex Ross, crítico de música da revista The New Yorker, apresenta no prefácio uma larga ambição: “My subtitle is meant literally: this is the twentieth century heard through its music.” (p. XIII). Não se trataria, pois, de uma simples história
da música (clássica) do século XX, porém do século que essa música criou.
Para tanto, o autor afirma rejeitar narrativas teleológicas que favorecem as vanguardas e combatem a burguesia filistina. Elas seriam comuns nas histórias da música escritas no século XX. Fiel a esse propósito, as referências no livro a Adorno (pensador com evidente parti pris pela Segunda Escola de Viena e explícita condenação de Stravinsky e do neoclassicismo) são, em geral, ácidas. O retrato de Pierre Boulez tampouco é favorável.
A escrita do livro é muito fluente, com algumas alusões literárias1 como “If The Turn of Screw is the most comprehensively disturbing of Britten’s operas, A Midsummer Night’s Dream makes amends.” (p. 433), em que a fala final de Puck em Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare (o título deste livro, deve-se lembrar, alude a uma célebre fala de Hamlet, “The rest is silence.”) é ecoada na referência à ópera que Benjamin Britten escreveu a partir dessa comédia.
O livro divide-se em três partes: 1900-1933, 1933-1945 e 1945-2000. Os capítulos são temáticos, como “Doctor Faust: Schoenberg, Debussy and Atonality”, “Death Fugue: Music in Hitler’s Germany”, “Beethoven Was Wrong: Bop, Rock and the Minimalists”. Há dois capítulos, porém, dedicados a um só compositor; Sibelius e Britten são os galardoados. A estrutura, cuja lógica é quebrada por esses dois capítulos, faz-nos recordar que partes do livro foram publicadas anteriormente em The New Yorker.
Estranha-se, porém que logo Sibelius e Britten, que estão longe de ser os compositores centrais no século XX, seja pela influência, seja pela posteridade de suas obras, recebam tal destaque no livro. Como figura nacional, afirma Ross, Britten era um pouco como Sibelius (p. 411), que recebe o maior destaque: ele teria sido, entre os compositores, o único, ao lado de Morton Feldman (cuja música é tão diferente...), que se separou de forma imperturbável de sua época (p. 488) – e que o seu tempo enfim teria chegado (p. 526). Além disso, segundo Feldman, Sibelius seria um radical, não um conservador (p. 177)!
O estranhamento pouco dura: a opção pela tonalidade, o paroquialismo (Ross aprecia o nacionalismo) e o uso das formas clássicas (p. 413) são os fatores que o levam a advogar por esses compositores.
No capítulo “Doctor Faust: Schoenberg, Debussy and Atonality”, o parti pris contra Schönberg e a música que Ross considera complicada leva-o a aproximar o compositor austríaco dos nazistas (p. 322) e a adotar uma visão simplista que assimila Schönberg a Adrian Leverkühn, o personagem do compositor sifilítico que fez um pacto com o Diabo no romance de Thomas Mann. A vanguarda musical seria efeito de pactos demoníacos que acabaram por distanciar a música do povo. Esse viés moralista transparece também na crítica de que A sagração da primavera não conteria “piedade”, endossada por Ross (p. 93). Em uma das imprecisões do livro, Otto Klemperer, quando jovem, é caracterizado apenas por ter-se especializado em “subversive productions of classic repertory” (p. 181). Dessa forma, negligencia-se a relação intensa que o maestro manteve com os compositores do seu tempo, inclusive Schönberg.2
Repete-se, em um dos erros factuais do livro, a lenda de que John Cage teria sido o primeiro a escrever uma peça musical feita só de pausas (p. 369). Ervin Schulhoff foi um dos que antecedeu, em 1919, durante sua fase dadaísta na peça In futurum das 5 Pittoresken.3 Contudo, esse compositor judeu e marxista, assassinado pelos nazistas no campo de concentração de Wülzburg, não conta com um serviço de relações públicas comparável ao do compositor estadunidense.
Esse erro, por sinal, é apenas parte da hipertrófica sobrevalorização da música clássica dos Estados Unidos, que acaba por confinar o livro a um lamentável provincianismo.
Decerto o livro lembra das grandes limitações que a música clássica sofria nesse país, com a limitação do repertório a tão-só 50 obras-primas cuja vendagem era mais fácil (p. 265), bem como a invisibilidade dos compositores americanos (p. 123-124). Porém, é flagrante o triunfalismo na marcha do livro até a música de Morton Feldman, Steve Reich (que é comparado a Wagner, p. 511) e John Adams, compositores que merecem largo espaço no livro.
Villa-Lobos, compositor que deixa à sombra os tão incensados, neste livro, músicos estadunidenses Barber e Copland, ganha quase nove linhas por conta de um trecho sobre Milhaud (p.101 e 103). A América Latina, por sinal, afora o México (NAFTA oblige), soa no livro como uma invenção desse compositor francês. Entre os argentinos, o livro destaca Osvaldo Golijov (eis que se encaixa na tese do livro da aproximação entre música clássica e popular no fim do século XX) e ignora Ginastera.
O autor trai, portanto, as duas premissas anunciadas no prefácio: o século XX que lemos neste livro está extremamente mutilado devido ao etnocentrismo, e há uma teleologia presente: a da predestinação dos EUA, a de que o século XX teria que ser dominado por esse país. Pobres tempos, que, para não fugir das alusões a Hamlet, talvez dissessem deste livro “The ears are senseless that should give us hearing”.
Notas
1 O autor, porém, erra a história da ópera Daphne de Richard Strauss (p. 330), talvez por desconhecimento do mito grego que a inspirou.
2 Se é verdade que Klemperer não se sentia próximo da música dodecafônica de Schönberg (embora tivesse estreado Música para acompanhamento de um filme – ver HEYWORTH, Peter, Otto Klemperer: His life and times, Cambridge: University Press, vol. I, p. 328) e teria evitado obras que julgava difíceis, isso ocorreu soment em parte com o repertório de Stravinsky, de quem nunca regeu, por exemplo, A sagração da primavera. Ross, mais adiante, lembra que Klemperer regeu obras do compositor russo e de Hindemith (p. 327).
3 Alex Ross poderia ter pesquisado a respeito na própria revista The New Yorker, edição de 24 de maio de 2004.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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Pádua,
ResponderExcluiracho curiosa tua impressão do livro. Ele já saiu em português depois disso, e, apesar de alguns defeitos que possui, é bibliografia indispensável em nossa língua sobre a música do século XX. Tem grandes méritos, como analisar com muita propriedade a relação entre produção musical e regimes políticos, ou alguns aspectos bem interessantes da indústria fonográfica e a música de concerto.
Sobretudo na comparação com outros livros que tratam do mesmo assunto, "O resto é ruído" se sobressai com muito destaque.
Não vejo nada ali de valorização excessiva dos EUA. Eles são mesmo o país mais importante do século, que poderia ser definido como o século americano, até mesmo na música erudita.
Minha maior crítica ao livro seria a quase ausência da música popular, o que é indesculpável para as pretensões anunciadas no subtítulo.
E sim, a ausência da música latino-americana é mais um erro imperdoável. Mas talvez ela seja decorrência da absoluta incompetência que temos em propagandear nossa produção cultural.
Não foi assim na década de 1940, um período que ele analisa muito bem no livro.
Obrigado pela mensagem. Discordo profundamente da opinião de que os EUA sejam o país mais importante do século em termos de composição de música erudita (acho, por exemplo, Stravinsky mais interessante do que Copland, e Webern do que Bernstein). Quanto à música popular, acho que você exige demais do pobre Alex Ross, e o livro teria que sair o triplo daquilo - de qualquer forma,s eria um empreendimento enorme demais para uma pessoa só, a não ser que, em outro delírio triunfalista etnocêntrico, analisasse apenas a música dos EUA, de certos países europeus e, talvez (devido ao NAFTA) algo do México. Não percebi que ele fosse muito original na relação entre produção musical e regimes políticos, exceto na estranha aproximação que ele vê entre Schönberg e os nazistas.
ResponderExcluirEu acho originais as abordagens dele para o papel de Shostakovich e Prokofiev no regime stalinista, por não cobrar deles o que não era possível: que eles estivessem dispostos a ser mortos em nome de uma pretensa "liberdade de criação".
ResponderExcluirAcho também muito importante o capítulo sobre a música no governo Roosevelt, inclusive usei bastante nas minhas pesquisas sobre Camargo Guarnieri e o modernismo brasileiro.
E ainda o capítulo sobre o apoio do governo norte-americano às vanguardas européias do pós-guerra.
Sobre a importância dos EUA: veja que Stravinsky, Schoenberg e Bartok foram para lá quando a Europa ficou inabitável para compositores ousados.
Paris foi uma espécie de centro das vanguardas e de artistas de ponta (não só músicos) até 1940. A partir desta época este centro se transferiu definitivamente para os EUA. Não necessariamente feito de compositores nascidos no país.
Outra coisa que achei incoerente na tua avaliação do livro: você critica Ross por ser nacionalista, entretanto, não consigo ver outro motivo pelo qual você defende Villa-Lobos.
Stravinski com Copland pode ser uma comparação perto da pertinência. Mas Webern com Bernstein? Inclua Ives, Cowell, Varèse, Cage, Reich, na lista de compositores para ter um panorama mais favorável aos EUA. Todos eles são bem tratados no livro do Ross.
ResponderExcluirObrigado pela mensagem. O Ross não está sozinho em não cobrar de Chostakovich e de Prokofiev que fossem mortos em resistência à ditadura soviética. Do capítulo do Roosevelt, não sei. Mas entendo que ele tenha mais coisas originais a dizer sobre o governo dos EUA do que sobre a música do século XX.
ResponderExcluirVocê fala da importância dos EUA como centro de refúgio? Concordo (apesar da dificuldade que o país ergueu contra diversos imigrantes que tentavam fugir do genocídio, especialmente judeus). Pensei que você falava da importância dos compositores do país, o que seria equivocado. De fato, esses músicos estrangeiros se refugiram nos EUA devido à guerra e ao nazismo. Mas pobres de Bartok e Schönberg, cuja música não foi bem acolhida naquele país. Pobre de Klemperer, cuja carreira só pode renascer quando voltou para a Europa. Stravinsky soube vender-se melhor.
Fico um pouco chocado ao ver que você acha que Villa-Lobos não tem valor musical, e que só se falaria dele por dever patriótico - ou que só por ufanismo poder-se-ia achá-lo mais interessante do que Copland. Gosto é gosto. Felizmente, diversos músicos estrangeiros pensam diferentemente de você e gravaram-no, do Rubinstein e Segovia até Renée Fleming. Se eu cobrasse, por exemplo, a inclusão de Ronaldo Miranda, creio que a única justificativa seria um acesso à Afonso Celso.
De qualquer forma, vejo com interesse que um pesquisador da música de Camargo Guarnieri, hoje, ache Villa-Lobos tenha interesse apenas local. Achava que era uma briga antiga. Por este blogue, eu não notava isto: http://omelomano.blogspot.com/2008/08/um-sucesso-de-villa-lobos.html
Só depois vi sua segunda mensagem. Concordo, Webern é incomparável!
ResponderExcluirNo duro, ele deveria ter escrito um livro somente sobre música dos EUA. Talvez o faça. Seria interessante ver quem mais ele pilharia além do que fez com Schulhoff em prol de John Cage.
Desculpa demorar tanto a responder aqui, mas o blogspot não avisa pra gente das respostas, a gente é que tem que lembrar de voltar.
ResponderExcluirEu não acho o Villa-Lobos ruim, de modo nenhum. Acho ele ótimo. Inclusive comparado com os norte-americanos.
O que eu quis salientar é que você achou que falar dos compositores norte-americanos era mero nacionalismo do Ross.
Não sei se é isso não.
Do mesmo modo que não é mero nacionalismo a gente falar do Villa-Lobos ou do Guarnieri. O fato é que os Europeus falam muito de si, e pouco dos de fora. Seria nacionalismo um germânico falar de Schoenberg?
Acho legítimo o trabalho de construção histórica do Ross, assim como acharia se alguém escrevesse a história da música do século XX colocando foco no modernismo brasileiro.
Eu acho que isso é mais do que necessário e justo - mas só um brasileiro faria isso.
Afinal, num livro de mil páginas como o de Jean e Brigitte Massin, Villa-Lobos não mereceu mais do que um parágrafo.
O Brasil está longe do mapa, e nisso acho que podemos recuperar a visão de Mário de Andrade: construímos os compositores e as obras, mas não o meio musical capaz de sustentá-los.
É paradigmático que os modernistas brasileiros (Villa-Lobos, Mignone e Guarnieri) só tenham se afirmado como compositores profissionais fora do Brasil. Inclusive e principalmente no âmbito da política de Boa Vizinhança.
Não foi só para europeus que os EUA foram um importante refúgio. Parte do trabalho de Copland foi fomentar a carreira de notáveis compositores latino-americanos como Carlos Chavez, Guarnieri ou Ginastera.
Obrigado pelas elucidações. Mas se você continua achando Villa-Lobos ótimo, deveria concordar comigo que não é necessário patriotismo para incluí-lo em uma história da música do século XX.
ResponderExcluirDesculpe, não fui claro: usei refúgio no sentido dado em relações internacionais, não em um sentido metafórico.
E não escrevi isto: "você achou que falar dos compositores norte-americanos era mero nacionalismo do Ross". Por que não se deveria falar deles? Discordei de outra coisa: do triunfalismo com que são abordados...