O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Alberto Pimenta, tortura, estupro e assassinato: a Indulgência plenária


Esta resenha foi publicada no número 16 deK Jornal de Crítica, em 2007, e não estava mais disponível. O livro é fantástico.



“Extravagante e viajado estrangeiro daqui e de todo lugar”: Indulgência Plenária de Alberto Pimenta


Pádua Fernandes

Na cidade do Porto, em fevereiro de 2006, após três dias de tortura e violência sexual, um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José) ponderou se o fogo não seria a melhor maneira de se livrar do corpo. Contudo, decidiu por outro elemento: a vítima foi lançada em um poço de mais de 10 metros de profundidade, onde morreu afogada. O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada.
A vítima, Gisberta Salce Júnior, era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Ou seja, segundo a tradição fascista portuguesa, uma não-pessoa. Sobre o bárbaro caso, Alberto Pimenta escreveu um importante poema longo: Indulgência Plenária (Lisboa: &etc, 2007).1 A capa da obra sugere um rasgão sob o quadro (parte de um tríptico de Emil Nolde), que mostra uma mulher de seios nus diante de três homens aparentemente embriagados.
Após todo um livro sobre um crime internacional (Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, resenhado em K 3), Pimenta voltou seus olhos para esse delito português (revelador do tratamento que a União Européia dedica aos “extracomunitários”) e escreveu uma elegia em cinco partes.2 Como o anterior, temos aqui um texto de intervenção. Bem escreveu Manuel de Freitas em resenha, "Não fosse um livro como este, com o seu raro poder de corrosão e de denúncia, e Gisberta Salce esperaria a sua segunda e definitiva morte – o esquecimento – tão indefesa como esteve perante o horror da primeira."3
Na primeira parte do poema, lemos o encontro do poeta com Gisberta em um mictório, mediado por um animal psicompopo (intermediário entre os vivos e os mortos), a mosca. A cirurgia de mudança de sexo é referida. A invocação anímica se dá em um ambiente não edificante – não se trata da emulação do modelo da elegia clássica, ao contrário de Antinous de Fernando Pessoa.
A segunda parte aborda a prostituição e apresenta o nome de Gisberta. A terceira faz-nos conhecer o sobrenome – que levará ao belo final – e menciona os assassinos, sem realmente os caracterizar: o autor não tenta descrever o crime e o julgamento. O poema não é dramático, e sim reflexivo, com meditações sobre o corpo e a finitude. Nisso, ele tem muito em comum com Imitação de Ovídio, o penúltimo livro de Pimenta (também resenhado em K , no número 3).
A quarta parte alude à doença e à situação ilegal em Portugal. Na quinta e última, temos a retomada dos motivos anteriores – a mosca, a doença, a ilegalidade, o assassinato, num movimento cada vez mais intertextual: a voz de Pimenta busca dar lugar à de Gisberta – mas não a pode mais encontrar: “tira-me daqui não sei se foste tu que disseste/ não mexeste os lábios// nem sei se poderias continuar/ as tuas trocas/ os teus desejos/ entre os habitantes dos mundos invisíveis” (p. 54). Pimenta vai-se substituindo por outras vozes, o que inclui excertos de ópera (na página 49, o Judiciário é comparado aos cortesãos, segundo a furiosa ária de Rigoletto na ópera homônima de Verdi) e culmina no trecho final, que é a reprodução de um trecho do Otelo de Shakespeare: a Canção do Salgueiro (Salce, em italiano), que antecede o assassinato de Desdêmona.
A quarta parte já terminava com o seu apelo desesperado para que Otelo somente a matasse no dia seguinte. Avançando no livro, e recuando na peça, optou-se não pelo grito, mas pela canção que a personagem entoa para silenciar o pressentimento da morte: “If I court moe women, you’ll couch with moe men.” E assim é, no silêncio de Pimenta, reencenada a morte de Gisberta.
Indulgência plenária realiza uma espécie de monumentalização da figura de Gisberta Salce, que se torna um “monumento aos tempos presentes” (p. 17), caído, portanto, e comparado a uma estátua de “braço decepado” em Toulouse, “de que nenhum funcionário sabe ou pode/ dizer nada” (p. 18). Gisberta se torna uma sacerdotisa da lua (a ária Casta diva, da ópera Norma, de Bellini, é citada na página 53), de quem se diz: “rodava o universo/ preso entre a Alavanca das tuas pernas” (p. 13).
Como de se esperar num livro de Pimenta, o poema é contrário ao Cristianismo (“Mas por que não tinhas tu um cão da raça trifauce/ que trespassasse as outras trindades”, p. 15), à hipocrisia (sobre Porto lemos: “uma Terra de melómanos/ com casas de putas e de música/ não perdoa”, p. 42) e ao fascismo (“mas não conhecias as muralhas/ que te encarceravam/ nem os graffiti suásticos/ que as cobriam”, p. 32).
No percurso do poema, do encontro de Pimenta com Gisberta até o silêncio de ambos, encontramos pedras-de-toque, como esta revisão de Platão: “Não tinhas uma direcção fixa/ porque isso são olhos dentro duma Cela/ Sempre a espreitar pelo buraco/ à procura da luz oficial que é autorizada a entrar” (p. 24). Dessa luz oficial foge um estrangeiro como Gisberta, estrangeira lá, mas também no Brasil – o que remete ao verso de Shakespeare citado no título. O preconceito racial, que seguiu Otelo (ele também é vítima na peça), no caso da brasileira encontra paralelo na discriminação em razão do gênero, a qual a tornou estrangeira em mais de um sentido e a levou à clandestinidade.
Essa morte, de caráter social, preparou o caminho da morte física: “Nesse inóspito lugar/ com essa entretanto nova Rica e desleal cidade/ não há relação possível” (p. 48).



Notas
1 - Note-se a ironia do título: indulgência plenária é o nome de um perdão a penas temporais, se os pecados já foram remitidos, concedido pela Igreja Católica.
2 - A aproximação entre os dois livros foi feita pelo próprio poeta, que, em 26 de maio de 2007, no Teatro Acadêmico Gil Vicente, leu ambos em um espetáculo a que deu o nome “Pequenos Estragos”. A leitura foi precedida de uma fala sobre “Poesia e violência”, por ele assim anunciada: “Alberto Pimenta é um daqueles poetas que levam muito a sério e agradecem a tolerância que Aristóteles lhes concede através da permissão de desvios da norma que ele normativamente fixa na Retórica e na Poética. Assim, considera-se um ‘tolerado’, no mesmíssimo sentido do termo administrativo com que eram designadas as prostitutas em Portugal até cerca de meados do século XX. Continuando o raciocínio, e da mesma maneira que não há mestres ou políticos iguais, separa os poetas em duas categorias: os tolerantes e os tolerados.
Na 1a Parte do serão, A.P. vai tratar o tema «Poesia e Violência», a partir da sua perspectiva de tolerado, portanto sem a mais mínima espécie de tolerância.” (http://dupond.ci.uc.pt/tagv/evento.asp?evtid=993)
3 - Casta morte. O Público, Lisboa, 16 de junho de 2007.

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