O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Após 400 anos, ópera e sussurros

Ópera é um gênero teatral muito divertido. Se a montagem é bem-sucedida, o que é especialmente difícil em certos casos (lembro de O Anel do Nibelungo - Der Ring des Nibelungen, de Richard Wagner, que exige cantores e orquestra de exceção, além de durar 14 horas), acho que nada é mais comovente.
Antes de tudo, deve-se lembrar que ópera não é um tipo de música. Pode-se compor uma com qualquer tipo - do canto medieval da proto-ópera O Auto de Daniel (Le Jeu de Daniel, do século XIII, composta por clérigos anônimos da Catedral de Beauvais) até o uso de música popular (jazz, rock). A música não precisa ser complicada: é necessário que seja dramática, isto é, que possa exprimir a variedade de emoções e de situações presentes no libreto.
Esse gênero teatral nasceu de um mal-entendido: a tentativa, no Renascimento italiano, de reviver o teatro grego, que era cantado, mas não todo cantado. Como tantas vezes ocorre em arte, iniciativas de recuperar o passado acabam instaurando novo presente.
Isso ocorreu no final do século XVI. No entanto, como a primeira obra-prima da ópera é Orfeu de Monteverdi, de 1607, foi em 2007 que foi lançada uma coleção para comemorar os 400 anos do gênero. Eu estava em Portugal quando ela começou a sair pela Prisa Innova, vendida nas bancas de jornais.
Eu tinha achado feliz a escolha dos títulos, que partiam do Barroco (Monteverdi, por exemplo) até a primeira metade do século XX (Alban Berg), incluíam obras muito conhecidas (La Traviata, de Verdi) e outras, mais obscuras, que merecem atenção (Proserpine de Lully). A escolha das gravações era, em geral, também feliz, com predominância de discos que já caíram no domínio público, como a gravação de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, regida por Furtwängler. Mas também havia discos recentes, como a ópera de Lully e o Tito Manlio, de Vivaldi, em que Federico Maria Sardelli rege o Modo Antiquo.
Em 2008, essa coleção foi lançada no Brasil, porém com apenas 25 títulos e sem a seção de discografia e videografia recomendadas, que todos os números europeus tinham. A caixa de proteção dos discos foi também descartada.
Mesmo nessa versão reduzida e simplificada, era uma coleção a se fazer para quem não tinha aquelas gravações. Um dado importante é que todos os libretos apareciam no original e em tradução para o português, e foi mantida a seção de história da ópera.
Agora, em 2011, a Folha de S. Paulo ressuscita a coleção com um projeto gráfico parecido, porém diferente (pelo que se pode ver na propaganda), com uma escolha de gravações que largamente coincide com a de 2008, incluindo alguns que não tinham saído no Brasil, mas na Europa. Ignoro se as seções antigas serão mantidas.
As duas primeiras gravações são exatamente as mesmas que já saíram no Brasil, uma Carmen (a conhecida ópera de Bizet) regida ao vivo por Karajan com Nicolai Gedda como Don José, e Fidelio, de Beethoven, em gravação ao vivo do grande maestro Otto Klemperer, com a comovente Sena Jurinac conseguindo cantar quase todas as notas do papel-título.
Quem fez a coleção de 2008 irá provavelmente comprar somente as gravações que não saíram daquela vez, e que não são tantas. O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, é uma delas: antes tínhamos Juan Diego Flórez (o maior tenor ligeiro em atividade) e o virtuosismo vocal de Edita Gruberova nos papeis dos jovens enamorados; agora, uma gravação mais antiga, com a voz modesta de Nicola Monti e o belo timbre de Victoria de los Ángeles.
De diferente, também sairão O Guarani, de Carlos Gomes, em gravação interpretada por Placido Domingo; A Valquíria, de Richard Wagner, regida por Furtwängler, com Martha Mödl no papel-título; Tosca, de Puccini, com Eva Marton e José Carreras, com o tenor em decadência vocal; As Bodas de Fígaro, de Mozart, numa gravação que nunca ouvi de Zubin Mehta com Karita Matilla e Lucio Gallo; Aida, de Verdi, com Aprile Millo (eu a vi cantar muito bem o papel no Rio de Janeiro, nos tempos de Fernando Bicudo) e Domingo; O elixir do amor, de Donizetti, com Ileana Cotrubas e Domingo (de novo! os fãs desse tenor notarão que a única gravação de Pavarotti incluída, uma Lucia di Lammermoor ao vivo, registrou alguns erros do tenor italiano); Fausto, de Gounod, com o grande tenor espanhol Alfredo Kraus e a versátil soprano italiana Renata Scotto.
Os outros títulos são iguais. Esta reedição alterada possui também 25 números. Não acho que a escolha foi tão interessante e representativa desta vez quanto a da encarnação de 2008. O século XIX, desta vez, foi hipertrofiado, e o século XX e o Barroco, reduzidos (Proserpine foi de vez para o Hades). A ópera italiana foi também hipertrofiada, e os autores eslavos, quase todos ignorados (incluiu-se, porém, um brasileiro, Carlos Gomes). A seleção acabou ficando bem careta.
No entanto, todas as gravações que conheço dessa nova série são no mínimo boas, e há algumas interpretações essenciais dessas grandes óperas, como Maria Callas em La Traviata (pena que em sua gravação de estúdio, em que está menos inspirada do que nas versões ao vivo, e foi acompanhada de parceiros medianos) e La Gioconda de Ponchielli, Furtwängler regendo as duas óperas de Wagner incluídas, a Mélisande na voz de Victoria de los Angeles, o Florestan de Fidelio por Jon Vickers, Galina Vishnevskaya cantando a Tatiana em sua primeira gravação de Eugen Oneguin de Tchaikovsky, e a interpretação de Marilyn Horne, que permanecia soberana nos anos 1980, do papel-título da ópera Rinaldo, de Händel, entre outras.
Esta coleção trata a ópera dando-lhe um cenotáfio. Essa abordagem é adequada, ou o gênero continua vivo? Acho que sim, porém desprovido da vitalidade que teve no passado, quando cumpria a função social das telenovelas de hoje e era muito popular.
Mas não está vivo no Brasil, exceto na forma de sussurros. Creio que a vida de um gênero está principalmente na composição. E a ópera brasileira, que efetivamente existia na primeira metade do século passado, foi progressivamente sabotada. No centenário de morte de Carlos Gomes, por exemplo, as criaturas encarregadas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro decidiram não programar nenhuma ópera dele.
Não basta, porém, sepultar os mortos com isolamento acústico: é necessário condenar os vivos ao silêncio. Quantas vezes é montado no Brasil um autor contemporâneo? Por que não temos mais montagens de títulos como Olga de Jorge Antunes?
O silenciamento tem sido sistematicamente cumprido pela maior parte dos detentores da agenda cultural. Não fazem e não deixam fazer.

5 comentários:

  1. meu deus, como sou ignorante em óperas! ilustração viva do resultado dessa política de apagamento e sabotagem contra a qual alertas...

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  2. Cara Denise Bottmann,
    faça a coleção, achará divertido acompanhar as mudanças de convenções e de estilos. Ópera é também História.
    Abraços, Pádua.

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  3. Antonio, meu guru para assuntos de ópera. Sensacional o post! Além de estabelecer as semelhanças e diferenças entre as duas fornadas -- Altea/2008 e Folha/2011 -- ainda dá detalhes preciosos de cada volume. Abraço grande, Ruy

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  4. Minha ópera preferida é Carmen, do Bizet.

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  5. Não tenho ópera preferida. Se fosse escolher, daria uma briga entre a Coroação de Popea (Monteverdi), Tristão e Isolda (Wagner), Wozzeck (Berg), As Bodas de Fígaro (Mozart), Otello (Verdi), Castor e Polux (Rameau) etc... Depende do humor do dia.

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