O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 24 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Kleist no centro da marionete

30 livros em um mês

Dia 14: Um livro antes do fim do mundo.

Imaginei esta categoria para Kleist e seu Sobre o teatro das marionetes. Foi uma de minhas experiências de vertigem com um texto. Trata-se de um conto de raciocínio, em que dialogam um primeiro bailarino que aprecia as marionetes e um narrador. Na história, tudo é muito rápido e aparentemente inevitável, das marionetes até o anunciado fim do mundo.
Li-o em bela tradução de Pedro Süssekind (ele mesmo escreveu o posfácio), em edição bilíngue que a Sette Letras lançou em 1997.
Marionetes que se movem pelo centro de gravidade são capazes de dançar melhor do que seres humanos, cujos movimentos são tomados por afetação. Tais erros viriam de o homem ter comido da árvore do conhecimento.
A referência ao Gênesis prepara o sentido escatológico do conto; no começo, já está o fim.
Alberto Pimenta tem um texto, "O meu centro de gravidade", com espírito bem diverso, mas com uma imagem comum à história de Kleist. Certa vez, quando era um jovem normal (isto é, não escrevia versos), passou mal depois de beber e teve que ser socorrido. Descobriu-se o problema: ele havia engolido o centro de gravidade do vinho e, por isso, tinha agora dois centros de gravidades, o que gerava a dialética e a composição de versos!

– Não terá ele engolido o centro de gravidade do eduardino? – bradou: – Mas por que não disseram isso logo?
Olhou para mim com ar compassivo e doce, e perguntou: - Olha, filho, já sentiste vontade de fazer?... desenhos ou versos ou assim? – Eu fiz que sim.
– Tás fodido – disse ele (na altura os médicos falavam como toda a gente) – isso agora nem com fisioterápia (na altura acentuava-se assim). Esse ardor do corpo passa-te, o pior é o outro. Eu vou-te dar umas pílulas, mas para curar mesmo precisavas de excretar (sabes o que é excretar?), precisavas de excretar o centro que engoliste. Porque agora tens dois! É essa dialéctica (tu sabes o que é dialéctica?) que te lesa a psique, que te lixa.

Publiquei esse texto no início da antologia A encomenda do silêncio, que saiu em 2004 pela Odradek Editorial.
Em Kleist, a ingestão do fruto do conhecimento gerou o efeito oposto ao do vinho de Pimenta: o homem perdeu o sentido do centro da gravidade. Toda a civilização não passa de mera afetação que impede a espontaneidade sábia dos movimentos, por isso o bailarino tem a aprender das marionetes, o espadachim não é capaz de vencer o urso.
A nota fantástica do conto torna-se mais clara quando o bailarino afirma que os bonecos são antigravitacionais. Só um deus poder-se-lhes-ia comparar – e, assim, o inanimado e o animal tocam no extremo do divino (a consciência infinita).
A consciência humana da graça a destrói. No final, anuncia-se o "último capítulo da história do mundo". O próprio autor estava próximo disso – ele se mataria no ano seguinte, em um pacto de morte com Henriette Vogel.
Foi sua forma de forçar as portas do paraíso? Ou foi simplesmente seu centro de gravidade que o levou a dançar como os deuses?

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