O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Kafka e latidos

30 livros em um mês
Dia 08: Um livro assustador.

Kafka tem muito humor: a tentativa de namoro em O processo, nesse mesmo livro, os próprios oficiais de justiça (um dos exemplos de duplas cômicas na obra desse escritor), os ajudantes em O castelo... Sem isso, ele seria menos desconcertante e - em última análise - menos assustador. Do próprio riso nasce o espanto e o terror.
A primeira vez que li O processo (ainda não conhecia a grande tradução de Modesto Carone, cujo trabalho deve ser sempre elogiado), fixou-se na memória a cena na catedral - é evidente, nessa parte, que tudo está perdido para K., e aquela lei corresponde a uma condenação prévia e inescapável - como se o próprio mundo fosse um patíbulo.
Poderia ter escolhido esse livro, mas há uma narrativa de Kafka que me assusta ainda mais, recolhida nas Narrativas do espólio (de novo, recomendo a tradução de Carone, publicada pela Companhia das Letras): "Investigações de um cão". É um conto? Decerto é um texto.
O fato de ser uma narrativa mais curta confere um efeito mais concentrado ao terror, por isso escolho-a - e porque a entendo ainda menos do que O processo!
Esse texto condensa várias questões do autor: a lei, a comunidade, o indivíduo e a solidão, a música, a fome. O fato de tudo ser visto pelo prisma de um cão é ainda mais inquietante.
Erich Heller (As ideias de Kafka, edição da Cultrix e da Edusp, tradução de James Amado) ressalta a invenção cômica de Kafka nesse texto - de fato, extraordinária: o cão não percebe os humanos, não percebe que são eles a fonte quando a comida vem "do alto"; ele consegue notar que "os ditos, a dança e a canção dizem menos respeito à nutrição do solo em sentido estrito e sim à coleta do alimento que vem de cima". Ele resolve investigar o fenômeno jejuando (torna-se um artista da fome), mas é inútil. Os homens lhe são invisíveis, assim como o são, creio, para o cão caçador que surge, perto do fim, que é regido pelo "dever" de caçar, mas não conhece a fonte da obrigação.
Heller lembra que o cão, por não ver os humanos, acha que certos cães flutuam - filhotes que estão sendo carregados. Aqui está a seriedade da invenção de Kafka: "A comédia, assim como a seriedade disso, é acentuada pelo fato de ter Kafka usado a palavra "Lufthunde", variação do termo marxista "Luftmenschen", homens que estão "no ar" por não terem função necessária ou claramente definida na economia social. Ele sempre acreditou que isto se aplicava a ele próprio como escritor." (p. 45).
Como acontece em Kafka, tanto interpretações materialistas quanto teológicas são possíveis. E se a relação entre o cão e os homens for análoga à que existiria entre o homem e os deuses? Nesse caso, as investigações do cão seriam uma paródia da teologia?
O texto tematiza o comentário à lei pelos sábios e o problema da transgressão (efetuada pelo cão) - questões importantes para as comunidades judaicas: "nunca infringi abertamente suas leis; só escapuli pelas lacunas da lei, para as quais tenho um faro especial." Essas investigações do cão, seriam, portanto, a literatura, que teria esse tipo de relação com a lei - como a da fenda nas muralhas?
Esse possível papel da literatura faz-me lembrar de uma afirmação de Blanchot, em De Kafka a Kafka, escreve que se tem às vezes a impressão de que, para Kafka, a arte vai além do conhecimento: "A arte se afirma conhecimento quando ele é degrau que leva à vida eterna, e ela se afirma não-conhecimento quando ele é o obstáculo contra essa vida." (Paris: Gallimard, 1981, p. 83) Pois, na cabala, o conhecimento de si mesmo, necessário em um primeiro momento, torna-se obstáculo à salvação: é necessário perder-se.
Ainda Blanchot: escrever é a única atividade que parece justificar a vida de Kafka "[...] pois a solidão ameaça dentro e fora dele mesmo, pois a comunidade não é mais do que um fantasma e a lei que ainda nela fala não é nem mesmo a lei esquecida, mas a dissimulação do esquecimento da lei." (p. 101)
Nesse sentido, esse cachorro é o escritor, numa comunidade em que os laços da solidariedade foram perdidos - é a "lei dos cães", e a intersubjetividade resolve-se em ladrar e silenciar; ele indaga: "Onde estão, portanto, meus congêneres?" - em toda parte e em lugar nenhum.
O terrível universo de Kafka, condensado nesse texto, recebe este fim, tão terrível quanto irônico: "Certamente a liberdade, tal como é possível hoje, é uma planta débil. Mas, de qualquer modo, liberdade, um patrimônio."

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