Estive no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul em uma interessante Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos. Na minha breve comunicação, me referi, entre outros documentos que pesquisei em outro Arquivo Público, o do Estado de São Paulo, a alguns da Anistia Internacional. Na foto, vê-se a capa do importante relatório sobre a tortura no Brasil, publicado em 1972, que colaborou para abalar a reputação internacional do governo Médici e da ditadura militar brasileira.
Antes de mim, falou a historiadora Renata Meirelles, que apresentou um trabalho sobre as formas de atuação da Anistia Internacional; no capítulo sobre o período da ditadura militar no Brasil, e mencionou o caso de Olavo Hansen, a que também me referi.
O curioso é que havia uma integrante da Anistia Internacional a ouvir-nos; ela anunciou (o que já vem sendo publicado na imprensa) que a organização, depois dos problemas judiciais que enfrentou com sua direção no Brasil, vai voltar para este país.
No debate, foi lançada para a mesa uma questão que criticava a forma de atuação da AI. Respondi que há diversas formas de lutar pelos direitos humanos, e que não se deve esperar uma só; essa luta deve ser vária. A forma de atuação da AI é válida e tem a característica de preservar seus integrantes - que escrevem cartas e requerimentos solicitando providências das autoridades, de e para todas as partes do mundo.
A violação dos direitos humanos em uma parte do mundo é sentida em todas as outras partes e acarreta protestos de todo o mundo, o que evoca a visão kantiana do direito cosmopolita: a união entre os povos da Terra permitiria "dass die Rechtsverletzung an einem Platz der Erde an allen gefühlt wird", no terceiro artigo definitivo para a paz perpétua no livro À paz perpétua.
O secretário-geral, Salil Shetty, afirmou que a AI está interessada nos direitos sociais no Brasil. Eu não sabia disso ainda, mas, em Porto Alegre, pude afirmar que a organização havia ampliado seu leque de atuação - que se concentrava nos direitos civis e políticos (veja-se a defesa dos prisioneiros políticos, que foi o foco da minha fala em Porto Alegre) - para os direitos sociais, por experiência que tive com a AI.
Quando trabalhei com a comunidade do Prestes Maia, uma imensa ocupação vertical urbana no Município de São Paulo organizada pelo MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), na ameaça da reintegração de posse, escrevi com Aziz Ab'Saber e Maria Rita Kehl um texto que saiu na Folha de S.Paulo de 12 de abril de 2006, hoje reproduzido em diversos lugares: Revitalizar sem segregar: o direito à cidade.
Para estudar o caso, é possível ler a dissertação de mestrado de Elenira Arakilian Affonso, Teia de relações da ocupação do edifício Prestes Maia, e o Dossiê do Fórum Centro Vivo, Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para as políticas públicas. Esses livros também trazem o texto que saiu no jornal. Cito aqui o final, que se refere à campanha que a AI lançou em prol da ocupação:
Por esse motivo, lançamos este apelo para o atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Há na prefeitura um processo administrativo de desapropriação que precisa de vontade politica para andar. Caso o despejo ocorra, o prejuízo será não só dos moradores mas também de toda a cidade, que perderá essa rica experiência urbana.
Antes dessa comunidade, o local estava abandonado e servia de ponto para o tráfico de drogas. Os atuais moradores afastaram o crime e revitalizaram o comércio da região. Eles sobejamente demonstraram que a cidade é revitalizada pelos próprios cidadãos: se forem expulsos devido a um projeto segregacionista ou estetizante, é parte da cidade que morre.
Os prejuízos para a ordem urbanística com o eventual despejo serão imensos. O aumento repentino e brutal da população de rua de São Paulo em quase 2.000 pessoas levará a uma sobrecarga dos serviços e da infra-estrutura da cidade -o que poderia ensejar uma ação civil pública.
Embora o Judiciário não tenha se manifestado em favor desses cidadãos -que, vale dizer, construíram para a cidade um novo espaço onde o lixo, a lama e o crime vicejavam-, é preciso lembrar que o direito está do lado deles. A função social da propriedade e o direito à moradia estão previstos na Constituição brasileira -mas, quando ela será aplicada em favor dos pobres? O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU também os ampara -mas, quando o Brasil cumprirá seus deveres internacionais para com os direitos humanos?
Assim, junto com a Anistia Internacional (AMR 19/013/2006), apelamos ao prefeito Gilberto Kassab, recém-empossado em São Paulo, para que inicie sua administração com um gesto que marcará para sempre, positivamente, a história da cidade. A legalização da ocupação da comunidade Prestes Maia, além de resolver o problema da falta de moradia para as centenas de famílias que hoje vivem no prédio e cuidam dele, representaria um grande passo de civilidade para nosso município. Seria uma estratégia inteligente para que a vocação original do espaço urbano seja cumprida: a hospitalidade, a cooperação criativa, o trabalho coletivo, o encontro. E que o direito à cidade seja garantido àqueles que a constroem.
A campanha da Anistia Internacional foi um dos fatores que contribuíram para o acordo político que se chegou com os ocupantes, que deixaram o imóvel.
Essa preocupação com esse direito social, à moradia, esperamos que permaneça na atuação da AI, pois o problema permanece no descalabro urbano geral. E os casos repetem-se: com o mesmo prefeito de São Paulo, reeleito, Kassab, o imóvel na avenida Prestes Maia voltou a ser ocupado, e novamente luta-se contra uma ação de reintegração de posse.
A luta é uma cidade - afinal, ela conquista espaços - e também precisa ser construída.
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