O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Matrimônio igualitário no Brasil? A cruzada no STF II

Em nota anterior, escrevi sobre o reconhecimento das uniões estáveis de casais do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil, analisando as teses alinhadas pelo advogado da CNBB.
A Associação Eduardo Banks veio unir-se aos esforços da CNBB, com argumentos próprios, também representativos da direita. Deve-se lembrar que a Associação, criada em 2006 com sede no bairro do Andaraí, no Rio de Janeiro, e tem como presidente Waldemar Annunciação Borges de Medeiros, preocupa-se com a legalidade no Brasil. Por esse motivo, sugeriu a alteração da Lei Áurea para que os descendentes dos donos de escravos pudessem ser indenizados.
Eduardo Banks dos Santos Pinheiro questiona o holocausto e impetrou habeas corpus para o criminoso nazista Alois Brunner (afinal não encontrado), que foi denegado, em sua cruzada para que os nazistas "possam viver livremente no Brasil".
Tendo em vista a visão do nazismo sobre a liberdade - e a liberdade sexual -, não seria de estranhar que a Associação estivesse ao lado da CNBB no julgamento pelo STF da questão da união estável.
A Associação Eduardo Banks contou com o jurista Ralph Anzolim para representá-la. O nobre advogado, que era até pouco tempo do PT do Rio de Janeiro, começou a sua fala modestamente comparando-se a Davi (no final, disse que falou demais para o seu tamanho - certamente pensou em Golias).
O nobre advogado afirma que o procurador-geral da república "vai se assustar com a quantidade de coisas incompatível [sic] no Brasil" (inclusive, segundo causídico, a presença do deputado federal Tiririca na comissão de educação da Câmara dos Deputados), mas não questiona a afirmação de que a discriminação dos homossexuais era incompatível com a Constituição da República. Aposta que, se há tantas coisas "incompatíveis", por que não mais uma? Trata-se do princípio do quanto pior, melhor.
Depois, segue uma teoria contrária ao direito escrito: não importa que a Constituição preveja a laicidade, e sim que o povo brasileiro é cristão: sente-se ainda o apelo ao Espírito do Povo (Volskgeist), típico da Escola Histórica do Direito, cujos nacionalismo e tradicionalismo participaram do caldo cultural que daria no nacional-socialismo.
Em seguida, o nobre jurista faz um uso retórico inteligente do crucifixo no STF: se aquela cruz está lá, ferindo a laicidade constitucional no tribunal que, paradoxalmente, deveria agir para garantir a constituição, por que não transpassar outros artigos da Constituição de 1988 com ela? Não seria incoerente com os usos do tribunal o STF trocar o traço da cruz pelo espaço da constitucionalidade?
Novamente, o nobre causídico apela para a efetividade contra a norma escrita. Em seguida, afirma (para a delícia dos culturalistas, imagino), que o povo não está preparado para o "casamento homoafetivo", assim como não está para a pena de morte e a legalização da maconha, e que a justiça "tem que ser cega, tem que ser surda", não pode ser "amiga".
Trata-se de uma visão republicana baseada na ditadura da maioria, com um forte traço xenófobo-culturalista: "Definitivamente, não somos influenciados pelos nossos hermanos argentinos, nós temos nossa própria formação cultural", aludindo certamente à aprovação do matrimônio igualitário naquele país.
Em impecável sequência lógica, o nobre advogado lembra de avaliação da UNESCO em que o Brasil ficou em 88o. lugar em ranking da educação. E de outra avaliação, com nono em corrupção. Tais seriam as tradições brasileiras, a ignorância e a desonestidade, por que mudá-las? Por que mudar as tradições - tirar-lhes a efetividade por meio da lei ou de uma decisão judicial?
"Por que temos que ser pioneiro [sic] numa coisa que o povo brasileiro não quer? Por que a tal [sic] de Dilma não faz um plebiscito? Porque sabe que vai perder." Brasil, terra de ignorância e corrupção, por que nela deveria haver igualdade? O interessante raciocínio sociológico de que em time que está perdendo não se deve mexer parte do mesmo pressuposto, na teoria constitucional, de que o texto constitucional deve permanecer estático, preso a uma pretensa vontade do constituinte originário.
Estranhamente, o nobre causídico afirma que, em sua cidade, "respeitamos, incentivamos o movimento à união estável"! Isso, pouco antes dos 25 minutos do vídeo. Se assim é, o que ele está fazendo ali, falando contra a ação? Essa afirmação surpreendente é seguida de outra, enigmática: "O casamento, não dá. Não dá pra eu chegar pro meu filho e explicar pra ele que ele, não é ele que vai colocar o véu." Pelo contrário: casando com uma mulher, é que se estranharia que o filho dele colocasse véu.
Minha pouca intimidade com as altas esferas da filosofia não me permite avaliar a última citação, de caráter aristocrático, que o nobre advogado fez. O autor foi "Frederique Nits, o anticristo, filósofo alemão" - não seria Nichts, tudo isso? Noto apenas que o advogado afirma, nesse fim da sustentação, que, até esse momento, seus argumentos foram cristãos, o que não é inteiramente verdade, pois outras correntes teóricas irromperam em seu discurso.
Uma delas é o problema do originalismo que, no direito constitucional dos Estados Unidos, serviu para legitimar a discriminação racial em nome da vontade dos "Founding Fathers". Se a constituição é um monumento petrificado pelas palavras do constituinte originário, os preconceitos e a servidão do pessado devem imperar sobre a progressividade dos direitos humanos.
Esse tipo de argumento, antes empregados contra os negros, foi e é usado para que os homossexuais nos EUA continuem como cidadãos de segunda classe. Sobre a questão, recomendo uma obra que resenhei, Dishonorable passions: Sodomy Laws in America (1861-2003) de William N. Eskridge Jr., que curiosamente apoia-se em Bentham (que não era um puritano...) contra Scalia.
Como antecedentes brasileiros dessa militância constitucional pelo atraso, só me resta evocar os argumentos de José de Alencar em favor da escravidão no século XIX:
A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem á ella graves interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito. No tenue sopro, que de todo não exhalou do corpo humano moribundo, persiste a alma e portanto o direito. O mesmo acontece com a instituição: enquanto a lei não é cadaver, despojo inane de uma idéa morta, spultal-a fora um grande attentado.
Enquanto a instituição persiste como prática social (direito consuetudinário, e não propriamente "lei", que é como Alencar chama nesse trecho), a lei escrita não deveria extingui-la. Claro que, com esse pensamento, a escravidão deveria continuar legal até hoje - e também o preconceito...
Cito de artigo do poeta e cientista político Ricardo Rizzo, A arrogância da teoria contra a lei: direito, escravidão e liberdade em José de Alencar, que publiquei em 2007. O trabalho deriva de sua dissertação de mestrado, em que trabalhou com os textos políticos do romancista brasileiro.
Rizzo vê no argumento do predomínio do fato social sobre a lei uma retomada da posição de Burke contra a Revolução Francesa. Acrescento: a Escola Histórica do Direito também adotou esse argumento, e não é de estranhar que Marx tenha chamado Gustav Hugo, autor do "Antigo Testamento" dessa Escola, de teórico alemão do Antigo Regime (o absolutismo) francês, em contraposição a Kant, que apoiou a Revolução. Hugo também era a favor da escravidão - um de seus argumentos (que Marx tem todo o prazer de transcrever) era o de que uma escrava poderia ser mais bela do que uma mendiga...
Tirei a foto acima no centro de Buenos Aires em julho de 2010. Cheguei à cidade pouco depois da aprovação da lei do matrimônio igualitário. Cartazes como aquele já tinham sofrido o efeito das intempéries e do anacronismo.

2 comentários:

  1. A "citação aristocrática" do fim da sustenção do advogado é do filósofo FRIEDERICH WILHELM NIETZSCHE (1844-1900), e está no livro " O ANTICRISTO" (Der Antichrist"), § 57 : "A injustiça não está nos direitos desiguais, mas na reivindicação de direitos iguais."

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  2. Das stimmt! Obrigado; não compreendi a pronúncia (dialetal?) do eminente advogado. Abraços, Pádua.

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