O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 8 de maio de 2011

Matrimônio igualitário no Brasil? A cruzada no STF I


O Supremo Tribunal Federal, no Brasil, decidiu, nas ações ADI 4277 e ADPF 132 (que foram unificadas devido a seu objeto comum), sobre a união estável, reconhecendo que ela existe também entre casais homossexuais - ou homoafetivos, como preferiu o relator da ação, Ayres Britto.
O caso tem várias implicações - ainda mais porque a lei da união estável, no Brasil, permite a conversão em casamento, o que provavelmente gerará novas campanhas judiciais e publicitárias de ódio contra os homossexuais.
Queria apenas comentar, nesta nota, a sustentação oral dos advogados que falaram pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e pela Associação Eduardo Banks: http://www.youtube.com/watch?v=cIliHsUqwe4
As duas entidades entraram como amicus curiae, isto é, não como partes da ação, e sim para trazer contribuições ao juízo - isso no plano formal. Na prática, vieram contestar o pedido, para que as uniões estáveis (que são um pecado para os católicos, mesmo se os pares são de sexos diferentes) se mantivessem um privilégio de casais heterossexuais - o que seria o equivalente a impor a toda população os preconceitos bíblicos ou corânicos.
Aquelas duas organizações foram expor na Corte a lógica teocrática - de que a norma religiosa deve ser a norma suprema - e perderam, neste momento. Mas, certamente, continuarão sua cruzada, literalmente falando.
A felicidade alheia faz sugerir formas outras de vida (se a homossexualidade não fosse uma tentação, ela não seria combatida...), e é contra isso que combate a lógica teocrática. Essa "lógica" é uma das principais inimigas da alteridade, e, onde aplicada, gera a guerra (os confrontos fratricidas no Egito estão a estourar), o crime e a violência, o abuso e a hipocrisia.
O advogado da CNBB, Hugo José Sarubbi Cysneiros de Oliveira, começou afirmando que a pluralidade tem limites e que devemos saber disso ao nos "contratarmos socialmente" (todos sabem que o contrato social não é um fato histórico nem em Hobbes nem em Locke, mas o advogado obviamente não se refere a tais pensadores) com uma constituição política. Non sequitur: o advogado, em vez de tratar politicamente o assunto, apenas tenta reafirmar os limites religiosos contra a liberdade, e que não foram referendados na Constituição brasileira, que determina a laicidade do Estado.
Tendo em vista que a posição a ser defendida diverge dos fundamentos invocados para fundamentá-la, poderia a sustentação oral fazer algum sentido? Jamais e, nesse sentido, é interessante examiná-la rapidamente: o erro instrui a razão.
Há problemas de ignorância da realidade fática: o nobre causídico logo compara poligâmicos e incestuosos com homossexuais - mas nunca vi uma estatística mostrando que heterossexuais não sejam a maioria nessas atividades. Estranhamente, ele cala sobre pedófilos, talvez porque seja um assunto delicado para a CNBB e para o Papado.
Problemas teóricos graves voltam a aparecer depois da introdução meio contratualista, com a declaração "A constituição não é lacunosa". Na disciplina de introdução ao direito, os estudantes aprendem que nenhuma lei é completa nesse sentido: a realidade é mais "criativa" do que a norma jurídica escrita e, como a sociedade é dinâmica, vive criando situações novas, que a lei não previu - ou não quis fazê-lo. O direito ocidental sabe disso desde a Antiguidade - veja-se o que Aristóteles diz sobre a equidade em Ética a Nicômaco, no século IV a.C.: a lei, por sua própria natureza, não consegue prever todos os casos particulares que existem na realidade e, por isso, o juiz deve corrigir a lei para chegar a um resultado justo.
Essa atitude, Aristóteles bem mostra, é típica do juiz, o que torna sem sentido o argumento do nobre advogado da CNBB de que só o Congresso Nacional poderia opinar sobre a questão.
Aristóteles não é exatamente uma novidade. O esquecimento de quase todo o pensamento filosófico ocidental, e também da teoria jurídica, perpetrado naqueles argumentos da CNBB, foi completamente consumado nesta passagem sobre o fundamento das ações: "sendo filosófica, é metafísica, sendo metafísica também é religião". O absurdo merece comentário? Obviamente, há filosofia fora da metafísica, e há metafísica fora da religião...
O nobre representante da CNBB continua, bradando contra o direito natural (o que é muito surpreendente, pois a tradição católica é jusnaturalista): "nós temos uma discussão jurídica, positivada" - lembremos de Kant: uma doutrina do direito estritamente empírica pode ser bonita como uma cabeça de madeira nas fábulas de Fedro, mas não terá cérebro.
A violência de um pensamento, ou da falta dele, que decide fingir que não se pensou nada antes ou depois de Tomás de Aquino, corresponde ao encobrimento da violência contra os homossexuais, quando o nobre advogado afirma que não há exemplos de violação da segurança jurídica em razão de uniões homoafetivas! Pelo contrário, direitos básicos são negados por causa do preconceito, não apenas os que um casal heterossexual pode receber e um homossexual não, mas também direitos individuais como a igualdade de remuneração no trabalho, a integridade física, o direito à vida (o Brasil é um dos países que mais assassinam homossexuais) são diariamente negados. Vergonha.
O nobre causídico prossegue, e afirma que, dependendo da decisão, "portar" (não entendi a palavra) a Bíblia será um ato criminoso. Isto me fugiu completamente à compreensão, já que o objeto da ação não era de direito penal, e não é possível, apesar de toda boa vontade da CNBB, a união estável com a Bíblia, e sim apenas com pessoas, seja que sexo tiverem. Será que o advogado foi convencido pela campanha mentirosa contra o projeto de lei que criminaliza a homofobia, e que evidentemente não estava em discussão no caso? É necessário esclarecê-lo a respeito.
Antes de despedir-se, o nobre advogado ainda fez outra declaração discutível, desta vez sobre o suporte fático da instituição da união estável no direito de família: "afeto e existência não podem ser parâmetro fático, requisito fático, para a constituição de união estável" - ué, se isso não for requisito prático, o que vai ser? Preconceito e nonsense teórico? Isto significa que CNBB só aceita uniões que não existam e que não tenham afeto? A CNBB, contrária à cidade terrena, quer impor uma sociedade que não existe? Essa lógica metafísica é a do extermínio - imaginemos que grupos seriam alvos desse genocídio, que, à falta da inquisição (não em lugares como o Irã, onde o poder ainda é teocrático), só pode ser hoje imaginário.
De qualquer forma, é estranho que tal organização, que só reconhece o matrimônio religioso, tenha sido aceita pelo relator das ações para falar sobre uniões civis, que não são seu assunto... Se ainda tivesse aparecido para defender o direito dos padres e freiras homossexuais, faria sentido a intervenção, mesmo com uma sustentação que desafiou os sentidos lógicos e jurídicos do pensamento ocidental.
É claro que somente um grande pensador ousaria afrontar todas essas tradições do pensamento; por isso, entendo que o nobre advogado tenha-se comparado a Tomás de Aquino (o segundo mais importante comentador de Aristóteles na Idade Média - o primeiro, Averróis), afirmando que "ele também era medieval".
Não vou escrever ainda sobre os argumentos do advogado da Associação Eduardo Banks, devido a sua complexidade teórica e densidade jurídica. Merecem uma análise separada.
De qualquer forma, pelo que consegui analisar até agora, é significativo que a direita não tenha argumentos exceto o incitamento ao ódio, que tem seus representantes no Congresso Nacional, o que torna mais difícil a tarefa de Jean Wyllys, do PSOL/RJ, da introdução do casamento igualitário no Brasil.
Lembro de uma decisão que a revista The Economist divulgou. O juiz Vaughn Walker, da Califórnia, decidiu que era inconstitucional impedir que homossexuais casassem, anulando lei estadual. As razões são muito claras, e, como a revista bem escreveu, será difícil encontrar nelas uma falha lógica:

a) Não se trata da criação de direito novo, mas da simples extensão de um direito já existente para casais que eram discriminados;
b) Não se trata de assunto religioso, e sim de casamento civil, pelo que os argumentos religiosos são irrelevantes;
c) A fecundidade dos casais não é requisito para o casamento civil, o que torna irrelevante que os noivos sejam do mesmo sexo;
d) Dar às uniões de casais homossexuais um estatuto inferior aos das heterossexuais fere injustificadamente o princípio da igual proteção diante da lei;
e) Reconhecer o estatuto de casamento a esses casais também terá um bom efeito para as crianças envolvidas.

A felicidade alheia é deliciosamente obscena, portanto
se apelou
contra a decisão.
Na Argentina, creio, tomou-se um caminho sensato: os homossexuais não querem direitos especiais para si, mas simplesmente a igualdade. O movimento pelo fim da discriminação buscou, pois, o matrimônio igualitário, que foi aprovado em 2010. Ainda não li o livro do jornalista Roberto Bimbi sobre o tema - vou fazê-lo; aqui, podem-se ler algumas razões que impulsionaram a nova lei.

Em outra nota neste blogue, mencionei a poeta, ensaísta e tradutora Ana Cristina Cesar. Ela vivia com outra mulher, como bem lembra Luciana di Leone no seu importante livro Ana C.: as tramas da consagração (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008).
Isso causou escândalo naquele bairro provinciano, Gávea, de uma cidade brasileira, o Rio de Janeiro. Esse foi um dos fatores que impulsionou o suicídio da autora, como conta Ítalo Moriconi no ensaio biográfico Ana Cristina César [sic]: o sangue de uma poeta, sem, no entanto, falar da natureza homoafetiva do problema.
Que essa dimensão não seja calada (o tal do extermínio no imaginário) e que casais como esses não sofram esse tipo de violência, mesmo nos locais mais provincianos do Brasil. Espero que essa decisão do STF contribua para esse caminho de justiça.

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