O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Após 400 anos IV: Gioconda e a polícia

O público que compra a coleção recauchutada de ópera que a Folha de S.Paulo está vendendo já percebeu que o marketing do jornal não sabe direito que produto tem nas mãos. Não tenho acompanhado os últimos erros porque ultimamente a Folha só tem trazido gravações que já haviam saído na banca de jornais ou, como no caso das Bodas de Fígaro, em gravação correta regida por Zubin Mehta, discos que eu já tinha em outra edição econômica.
Erro maior foi o texto da gravação da Tosca referir-se a uma outra gravação (por sinal, bem melhor do que a que foi vendida pela Folha). Há outros, menores, porém fatais para uma voz, como de chamar Elisabeth Grümmer, que canta na antológica gravação de João e Maria (já saiu antes nas bancas; quem não tem, pode comprar de olhos fechados), ópera de Humperdinck, de meio-soprano (voz média da mulher). Ela era soprano (voz aguda feminina): ouçam seus agudos em Don Giovanni, na ária Non mi dir.
Algumas cantoras, no entanto, parecem possuir simultaneamente os dois registros vocais. Era o caso de Callas. A Folha lançou agora La Gioconda, com música de Amilcare Ponchielli e libreto do escritor (escreveu os libretos também de Otello e Fasltaff, as duas últimas óperas de Verdi) e músico (sua ópera Mefistofele poderia estar na coleção) Arrigo Boito.
La Gioconda retorna (havia aparecido na coleção de 2008) em momento oportuno, em que se protesta contra a violência policial em São Paulo. Sua história, baseada em obra de Victor Hugo, passa-se em Veneza. Barnaba, um agente de segurança do governo, trai, chantageia, acusa falsamente para a Inquisição uma velha mãe cega porque deseja favores sexuais da filha, faz outra denúncia contra seu rival no amor (Enzo, que havia sido proscrito da cidade), assassina. A impunidade é completa - e ainda é preciso lembrar do chefe da Inquisição, que manda a mulher (que ama outro) envenenar-se e depois expõe o (pretenso) cadáver em uma festa. Muito religioso. Veneza também era uma cidade bloqueada.
Barnaba é tão exagerado que tendo a vê-lo como uma alegoria do Estado. A frase que o resume talvez seja "S'annienti tutto" (que tudo se aniquile), no primeiro ato.
A gravação regida por Antonino Votto conta com duas grandes cantoras: Maria Callas (Gioconda) e Fedora Barbieri (Laura). Os homens são bons, mas o que realmente importa, nessa ópera, é a soprano. Esta ópera não é a melhor de sua época, claro, mas, com uma grande intérprete, é uma experiência emocionante; vejam Eliane Coelho cantando a ária "Suicidio".
É uma ópera de cantor. Da mesma forma, não dá para suportar Andrea Chenier, de Giordano, se o tenor for fraco. Mesmo que tudo em volta dele seja excelente, ficará um vácuo no meio da ópera.
Callas era tão fantástica como músico e atriz que normalmente se tornava o centro de todas as produções de que participava. A primeira vez que a ouvi foi numa transmissão dessa mesma ópera pela Rádio MEC do Rio de Janeiro. Eu não sabia, mas era o último ato, que começa com dois solos muito dramáticos para a personagem, depois vem um dueto com o tenor, a que se une a mezzo, até que eles partem e Gioconda julga estar sozinha. Mas Barnaba (o agente que representa o Estado na ópera) logo chega e a surpreende antes que fuja - e faz uma pergunta contratualista: "Assim manténs o pacto?". Pois ela havia jurado se entregar a ele se Enzo (que ela ama, embora ele ame Laura) fosse libertado. Um momento hobbesiano, pois. Ela morre com um estilo vocal totalmente diferente do início do ato - a voz precisa soar leve, Gioconda finge enfeitar-se alegramente para o vilão, mas, na verdade, prepara-se para suicidar-se. E acaba a história.
Fiquei paralisado quando ouvi a voz de peito de Callas pela primeira vez - o som é tão dramático e profundo: "Or piombo esausta fra le tenebre" ("Agora caio exausta entre as trevas"), e a própria cor da voz cria a escuridão. Nesse momento, ela soa como se fosse uma contralto - no entanto, o agudo está lá também.
Essa foi a primeira gravação de ópera completa (embora haja cortes) da grande soprano em estúdio, para Cetra em 1952. Ela regravou Gioconda para EMI em 1959, ainda inalcançável (com o mesmo maestro; os outros cantores são inferiores aos da primeira versão), e superando a si mesma em refinamento no último ato.
Gioconda era uma cantora das ruas; se estivesse na São Paulo de hoje, teria que fugir da polícia ou mudar de profissão. Barnaba, o agente hobbesiano, quer impor a segurança sobre a liberdade. Porém, no coro inicial, ouve-se: "Noi cantiam! chi canta è libero./ Noi ridiam! chi ride è forte!" (Nós cantamos! Quem canta é livre./ Nós rimos! Quem ri é forte!)

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