Como deve ser o canto da cidade bloqueada? Evidentemente, há diversas possibilidades formais para expressar tal bloqueio, e é evidente que São Paulo é um exemplo dessa cidade.
Mesmo que se restrinja o bloqueio à simples questão da circulação, não se poderá deixar de ver as raízes políticas do problema. Veja-se como o governo estadual persiste na ilegalidade no tocante às obras do metrô, metrô que serve de objeto para investigações da justiça suíça, por conta de alegada corrupção da Alstom. Essa questão, no Brasil, chegou ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
O bloqueio da cidade é o bloqueio da política, em um Estado que não tem encontrado ou apostado em alternativas novas, mesmo depois do fracasso monumental do governo em maio 2006, quando o crime organizado paralisou parte do Estado. Essa paralisação foi seguida de várias mortes cometidas por agentes de segurança, ainda sem explicação.
A circulação é multifatorial, como, de resto, são todos os fatos sociais. A política de segurança, obviamente, a influencia, e apenas a aposta de São Paulo no fracasso pode explicar que o governador de então tenha voltado a esse cargo.
A Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard e a ONG Justiça Global, lançaram há pouco o importante São Paulo sob achaque, que investiga como desavenças entre o crime organizado fora do Estado e o crime mais ou menos organizado dentro dos aparelhos estatais de segurança teriam dado origem à paralisação de São Paulo naquele mês. Os pesquisadores apontam que a situação de impunidade e de corrupção hoje são as mesmas, senão piores, das vésperas daquele acontecimento: "Agentes públicos, e toda a sociedade paulista, continuam vulneráveis a novos ataques." [p. 3]
Também por causa dos cinco anos desse acontecimento, publicou-se (ainda não o li) Do luto à luta: Mães de maio, também lançado recentemente, que trata justamente da resposta policial àquela paralisação, com a morte de 493 pessoas. Uma das líderes do movimento das Mães de Maio, Débora Maria, enfatizou, no lançamento, que o Estado não apenas deixou os crimes impunes, mas elogiou a polícia. As mudanças que combateriam essa situação estão oficialmente bloqueadas.
Como se poderia cantar o bloqueio da cidade? Adoniran Barbosa não chegou vivo aos dias de hoje, mas suas canções, sim. Os Demônios da Garoa davam um tom esfuziante para o que ele compôs: Saudosa maloca é um exemplo. Quando Elis Regina a gravou, intepretou genialmente a gravidade da situação: trata-se de uma reivindicação de posse, em que uma família é expulsa de sua maloca e resigna-se em nome de Deus e do Código Civil. Eis o gênio dessa cantora.
Lembro de uma entrevista que ela deu ao Vox Populi, com perguntas do público, que estava fora do estúdio. Uma jovem reclama da intepretação dela, que seria "arrastada". Elis sorri e simplesmente responde que gostava assim. Quem aparece depois? Adoniran, que elogia a forma como ela cantava essa mesma canção: "Você não pode calcular como eu gostei. Eu e todos meus amigos." A cantora comenta: morar naquelas condições já era um desrespeito, ser enxotado em 24 horas é mais ainda. E ela, inteligentemente, acusa como as pessoas confundiam o personagem de Adoniran (engraçado) com a obra musical dele.
Pois bem; "Trem das onze" é outro clássico do Adoniran. Já virou até propaganda inofensiva de brinquedo. Ela tem um fundo edipiano, do filho que não pode ficar com o seu amor pois tem que voltar para a mãe? Depende da interpretação.
Mas há outro bloqueio aí: ele mora no Jaçanã (na canção, "em Jaçanã", pois Adoniran não conhecia nem o lugar nem como a ele as pessoas se referiam) e, se perder a condução, não tem como voltar para casa.
Fabio Weintraub sempre me falou de estudo de José Miguel Wisnik sobre a canção paulista, publicado em Sem receita: ensaios e canções, em que essa canção é analisada como um exemplo - já que Adoniran referiu-se a um lugar que desconhecia, o que seria impensável em Noel Rosa - de "o quanto a experiência da cidade, aqui, impõe-se de saída como construção ficcional de um todo que escapa."
Mas a leitura de Wisnik parece-me excessivamente otimista, por assim dizer: não se trata apenas de a cidade ultrapassar o indivíduo, o que se sabe desde os tempos da pólis. Trata-se de uma cidade que divide, em vez de unir.
Quase três décadas depois da morte de Elis Regina, com o agravamento das condições de moradia nas grande metrópoles, Mônica Salmaso, outra intérprete comprometida com a música brasileira, volta a Adoniran para extrair esse canto do bloqueio.
"Alma lírica brasileira", disco de três mentes musicais, ela, Nelson Ayres e Teco Cardoso, é fechado com este canto: Trem das onze é interpretado de forma lenta, arrastada, e a sonoridade do sax barítono contribui para o quadro noturno, soturno, quase um pequeno réquiem para cidade que deixou de ser (em um verso, a cantora lembra que ela e Teco Cardoso, seu marido, têm um filho único - e precisam voltar...)
Conseguirá se chegar até a casa? Em que condições? A casa precisa ser olhada: a insegurança (outro fator de bloqueio da cidade), mais do que o Édipo, preside esta interpretação.
O disco todo é muito bom, mas esse desfecho é genial e, ademais, inesperado no trabalho de uma cantora que não é associada normalmente à política. Mas ela é uma cidadã, evidentemente, e essa condição significa participar da política.
P.S.: Alguém me disse que reduzi a tese de Wisnik, mas na verdade nem apresentei a ideia dele de que São Paulo só seria abarcável pelo imaginário, daí a diferença entre Adoniran e Noel. Mas repito que o ensaio de Wisnik preocupa-se com o esforço de integrar, e não com os bloqueios - de classe, de circulação etc. - o que gera uma leitura parcial da canção, que inicia justamente dizendo: "Não posso ficar nem mais um minuto com você". Essa impossibilidade é gerada pelas condições concretas da cidade, que não eram o problema de Wisnik - e sim de Adoniran.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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excepcional a reflexão.
ResponderExcluirMuito obrigado. O pensamento deve servir para desbloquear.
ResponderExcluirQue bom achar alguém como você.
ResponderExcluirOs meu blogs são em inglês. O primeiro foi por que pesquisei a respeito dos medicamentos cujos riscos superam em muito os benefícios.
Não tem nada em portuguès mas tem muita gente blogando ou com sites.
Fiquei três meses no blog do Phlip Dawdy e após uns três meses eu enchi o blog de comentário.
Aí tive que abrir a "minha casa" para poder trocar figurinha com os outros.
Isso em 2008. Mas em 2009 eu estava tão atoada nesse assunto, escrevi até um livro em português ma não vou publicar. que tinha que pensar em outras coisas.
Abri este aqui.
Ia falar só sobre artes e boas inciativas.
doce ilusão. Acabou que tem tanto absurdo acontecendo que eu já vi tanta coisa que nem sei como classificar.
Acabou que eu sei mais sobre o que rola em outros países do que aqui. Vergonhoso.
Nunca ouvi falar em "Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard" mas vou pesquisar.
Harvard... Hmmm... da parte da medicina tem um monte de cretino.
Estão medicando crianças. E aqui no Brasil não temos nada, absolutamente nada sobre o assunto.
Estamos falando de saúde. E a medicina é corrupção para tudo o que é lado.
Vou me atualizar aqui no teu blog.
Valeu.
Ih... falei demais...
Obrigado. Vi seus blogues; escreva mais sobre saúde, que é um tema tão relevante.
ExcluirAbraços, Pádua