Quando escrevi sobre o Barbeiro de Sevilha, já tinha me referido ao fato de que o libreto trazia o texto de uma ária que não foi gravada.
Perguntaram-me sobre os cortes devido a uma estranha nota da Folha, que não esclarece, de fato, os leitores (talvez o próprio departamento de marketing não esteja esclarecido):
Cada gravação ou encenação de uma ópera pode conter diferenças em relação à partitura e ao libreto originais, resultando em uma obra única que se destaca no repertório operístico.
Diferenças entre a gravação do livro-CD e os libretos dos volumes não significam que a gravação foi cortada ou que não é integral.
As diferenças indicam que foram tomadas decisões artísticas que resultaram em uma gravação, uma obra artística em si, com características específicas.
Entendo que muitos não percebam nada a partir dessa "explicação".
Às vezes, o próprio compositor autoriza corte de alguns trechos, seja por conta de algum intérprete, seja por pressão do teatro, seja pela duração excessiva da obra, seja por ter mudado de opinião: Wagner cortou parte da cena em que o protagonista revela sua origem e seu nome na ópera Lohengrin porque julgou que era um anticlímax. Rossini cortou partes do Guilherme Tell porque a ópera era enorme (e desigual); Mozart cortou o "Torna la pace", bela e última ária do protagonista da ópera Idomeneo porque o tenor não daria conta de cantá-la.
Na maioria das vezes, os cortes vêm dos intérpretes, e não dos compositores, que apenas podem remexer-se em suas tumbas em protesto. Em geral, decorrem de escolhas artísticas ou, o que não é raro, de incapacidades musicais. Algumas gravações têm cenas inteiras que não foram registradas; faltam à gravação de Lucia di Lammermoor, de Donizetti, que a Folha vendeu, a cena entre Raimondo e Lucia, e o dueto entre Edgardo e Enrico, tradicionalmente cortados porque não seriam tão bons (concordo em relação à primeira).
Nenhuma gravação com Maria Callas, ao vivo ou em estúdio, as inclui. As óperas da época do bel canto (isto é, dos tempos de Rossini, Bellini, Donizetti e do jovem Verdi) sofriam vários cortes, invariavelmente, se apresentadas. Callas, seguindo a lição do maestro Serafin, defendia esses cortes para tornar a ação mais fluente. A partir dos anos 1960, muitos intérpretes passaram a preferir a interpretar as óperas em sua inteireza, como o maestro Richard Bonynge e sua esposa, a soprano Joan Sutherland, Beverly Sills etc.
Nem sempre se perdia grande música com isso. Não acho que há perda alguma na omissão da cabaletta de Giorgio Germont no final da primeira cena do segundo ato da Traviata (a música é fraca). A gravação que a Folha vendeu não possui esse trecho - e muitos outros.
Alguns cortes eram realmente prejudiciais para a música, e só se justificavam pelas fraquezas dos intérpretes, incapazes de dar conta tecnicamente dos trechos omitidos, ou de compreendê-los estilisticamente, como foi o caso do que mencionei no Barbeiro de Sevilha.
Outra pergunta que me fizeram foi sobre a Tosca, ópera de Puccini, que está sendo vendida em uma gravação regida por Michael Tilson Thomas, que é melhor em Debussy do que em Puccini. Eva Marton, Juan Pons e José Carreras estão nos papeis principais - é o que lemos na capa, e ouvimos nos dois discos.
O texto da gravação, no entanto, descreve, com muitas e justas loas, a primeira gravação de Maria Callas e Tito Gobbi, com Sabata regendo, e Giuseppe di Stefano... Como essa é geralmente considerada a maior gravação da ópera, e assim é descrita, os ouvintes ficarão talvez decepcionados com o que ouvirão: Eva Marton um tanto tonitruante para o papel (em Turandot, papel mais dramático, ela era extraordinária), Pons um tanto leve em comparação: ele comanda a tortura do tenor e ameaça de estupro a soprano, mas sua voz não exprime tais vilezas facilmente - é claro, porém, que ele é muito melhor para o papel do que o shubertiano Dieskau, que, confrontado com a wagneriana Birgit Nilsson, parece que vai ser estuprado pela soprano. O crítico da Grammophone gostou um pouco mais da Marton do que eu.
Carreras já estava em franca decadência (essa gravação é posterior ao transplante que fez para salvar-se da leucemia), embora sua voz ainda fosse capaz de momentos de beleza e a dicção permanecesse clara. Há passagens em piano no terceiro ato, na ária e no começo do dueto que são belas - o tenor fez da necessidade uma virtude. Ele é o melhor intérprete nessa gravação.
Para ouvi-lo em plena glória, sugiro a gravação com Caballé, regência de Colin Davis. Aqui, o tenor nove anos antes do disco que a Folha está a vender.
Mais uma nota. A coleção é inferior à de 2008, como escrevi aqui, embora não seja tão fraca quanto sugerem aqueles que acham que Herbert von Karajan só conseguia reger valsas da família Strauss. Não gosto nada do Karajan como pessoa e empresário musical (sua influência foi até perniciosa), mas não posso negar que ele tinha talento musical, e que, além de ter sido muito feliz em várias obras do repertório germânico, também foi capaz de realizar gravações importantes de ópera italiana (como Madama Butterfly, com Callas e, mais tarde, com Mirella Freni, La Bohème com Freni e Pavarotti) e francesa - por sinal, ele chegou a dizer que sua música preferida era a ópera de Debussy, Pelléas et Mélisande.
Curiosamente, o crítico do Amálgama (também escrevo lá), André Egg, elogia a gravação com a regência mais desastrosa até agora na coleção, que é a de um maestro brasileiro que desvitaliza a partitura de Carlos Gomes e sonambuliza a Protofonia já no seu ritmo inicial, interpretado de forma no mínimo equivocada. Pobre Guarani...
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