O livro me fez reler 26 poetas hoje, a antologia que Heloísa Buarque de Holanda organizou em 1976, relançada nos anos 1990 pela Aeroplano. A organizadora dispôs na internet essa última edição. As notas biográficas sobre os poetas apresentam alguns erros; Ana Cristina Cesar, por exemplo, vira Lesar, e seu ano de morte é ignorado - e ela nunca foi como os autores que, ainda vivos, já têm livros póstumos, simplesmente porque sobreviveram à própria morte.
Ainda sobre Ana C, falei, em uma entrevista que dei ao Duanne Ribeiro da Capitu (ela ficou demasiadamente oral), que a achava a poeta mais importante de sua geração
[...] porque ela tem uma forma de ficcionalizar a intimidade, em que ela brinca com a esfera privada — ela brinca com escritos privados como diários, como cartas — só que não é confissão, há a ficcionalização dessa intimidade, e com uma indeterminação dos sujeitos e das vozes: você nunca sabe direito quem está falando no poema dela. Ela consegue fazer uma poesia que é polifônica, uma poesia que tem mais de uma voz. Do conflito e do diálogo entre vozes diferentes de um mesmo poema você pode criar um efeito que pode ser mais rico do que o de um poema monofônico, principalmente se você quer fazer a encenação de um drama íntimo ou de um drama social. A Ana Cristina César [erro na revista; o nome dela não tem acento] cria nos seus poemas um palco para esses dramas. Os temas e os motivos da poesia dela são muitos diferentes dos meus, mas algo da metodologia dela eu peguei pra mim.
Nesse sentido, creio que ela fez poesia política, o que muitas vezes é ignorado. Inclusive as políticas de gênero - Cenas de abril é seu livro mais ousado nesse aspecto, creio.
Mas, naquela antologia, já estava o célebre poema sobre coceira no hímen, que veio parar em Cenas de abril, com outros poemas terríveis: "Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem. Ângela nega pelos olhos: a woman left lonely. [...] Mamãe veio chorar e percebeu tudo. Mãe vê dentro dos olhos do coração mas estou cansada de ser homem.". E meu preferido, "21 de fevereiro", que começa com "Não quero mais a fúria da verdade". Nesse, ela revira Manuel Bandeira, o Hino à Bandeira (ela é tão irônica, quando pega o oficialismo da literatura!), Baudelaire, em um dos mais incríveis poemas brasileiros escritos de mulher para mulher. Termina assim:
Antes eu era 36, gata borralheira, pé ante pé, pequeno polegar, pagar na caixa, receber na frente. Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui, longe deles. Escuta, querida, escuta. A marcha desta noite. Se debruça sobre os anos neste pulso. Belo belo. Tenho tudo que fere. As alemãs marchando que nem homem. As cenas mais belas do romance o autor não soube comentar. Não me deixa agora, fera.
Quando a antologia 26 poetas hoje foi lançada, houve polêmica. A antiga revista José organizou uma conversa sobre o livro. A organizadora e os poetas Ana Cristina Cesar, Geraldo Carneiro e Eudoro Augusto conversaram com parte do conselho editorial da revista, Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite e Jorge Wanderley. A conversa é antiga, alguns deles estão mortos.
Não houve propriamente um entendimento. Sebastião Uchoa Leite viu um ataque a Cabral no livro, porém Heloísa Buarque de Holanda lembrou de que ele estava muito vivo em Capinan e Zulmira Ribeiro Tavares. Ana Cristina Cesar acrescentou: "Zulmira quase que parodia Cabral e Drummond..." De fato.
Vesuvio reúne poemas escritos a partir da década de 1990, bem superiores aos que estavam naquela antologia.
Não escrevi, na resenha, que se pode ver que Zulmira Ribeiro Tavares passou por Drummond (como tantos outros) em passagens como esta:
[...] Ouça
o poema uma vez e outra
como ratos miúdos e prolíficos
sujos da miséria e de seus ventres envenenados
ao morrer.
São os ratos que roeram o século (como diz Drummond em "Edifício Esplendor") e agora expiram de terem incorporado o próprio tempo? Alguns poetas morrem disso. Ainda Drummond, nesse mesmo poema: "As complicadas instalações de gás,/ úteis para o suicídio".
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