O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Terra sem lei IV: o Código Florestal e a eficácia devastadora da inexistência

Tendo em vista que noções primárias de direito não frequentam os currículos escolares, as pessoas em geral não sabem dos vários planos relativos à norma jurídica e dizem coisas, que se podem ouvir no senso comum jornalístico, e mesmo no acadêmico, do tipo: se o direito não é eficaz, não é direito. Lembro de um seminário a que assisti no ano passado em que um filósofo falou algo do gênero diante de estudantes de direito, que riram.
Afinal, os estudantes aprendem no primeiro ano que há normas que existem, mas não entraram em vigor; há normas que existem, mas não têm eficácia formal; há normas que existem, têm eficácia formal, mas não têm a material etc. Sem falar da eficácia contida. Desconhecer isso equivale a não entender o be-a-bá do que acontece no mundo prático da aplicação do direito. Não rezo pela cartilha de Kelsen, mas ele é muito claro em afirmar que é necessário que o ordenamento jurídico, como um todo, tenha eficácia; algumas normas podem não a ter, no entanto.
Tanto questões de ordem técnica quanto de ordem política podem gerar essa ineficácia. O Código Civil de 2002, assim como o de 1916, demorou um ano para entrar em vigor. Por quê? Como se trata de uma norma muito extensa, que abrange diversos assuntos (família, posse, domicílio, propriedade, herança, vários tipos de contratos, direito empresarial etc), era preciso que a norma não produzisse seus efeitos já - pois a população deveria ter o tempo de conhecer o texto e se preparar para ele. O Código existia, porém, mesmo antes de entrar em vigor...
No entanto, há normas, mesmo em vigor, que necessitam de regulamentação para que possam produzir seus efeitos - normas de segurança do trabalho, regulamentadas pelo Ministério do Trabalho, normas tributárias com tabelas de alíquotas etc.
Algumas vezes, a regulamentação é atrasada por questões políticas: foi o caso do Estatuto da Cidade, a lei 10257 de 2002, que demorou a vir. Previsto pelo artigo 182 da Constituição de 1988 para regulamentar os instrumentos urbanísticos constitucionais, sofreu a resistência feroz do capital imobiliário, que não tem interesse em que sejam aplicados institutos como o parcelamento compulsório.
O problema não terminou, contudo, com a existência e a eficácia formal da norma regulamentadora, pois a vinda do Estatuto foi acompanhada da resistência de diversas prefeituras a implementá-lo por meio da legislação municipal, como expliquei em texto publicado no livro da I Jornada em Defesa da Moradia Digna. Trata-se de um problema de eficácia social, pois diz respeito a instrumentos em geral com eficácia formal, mas que não são, na prática, implementados.
Seria ingênuo, politicamente e juridicamente, afirmar que isso significa que o direito da cidade não existe. Ele está lá, e sempre gera algum efeito, mesmo que meramente simbólico, efeito esse que pode servir tanto para a dominação quanto para a resistência. O que cabe fazer é apropriar-se desses instrumentos jurídicos e saber dar-lhes, inventar-lhes a eficácia, como, entre vários exemplos, os abolicionistas que souberam usar o direito romano para libertar escravos no Brasil.
Há casos em que a relação entre legalidade e ilegalidade gera um tipo de efetividade a que chamei de paradoxal. Como escrevi na minha dissertação e na minha tese, ocorre uma produção legal da ilegalidade. Escrevo isso por conta do trâmite do projeto de lei n. 1876/1999, apresentado para criar um novo Código Florestal, revogando a Lei nº 4.771, de 1965, e alterando a lei de crimes ambientais, Lei nº 9.605, de 1998.
A lei, antes mesmo de ser aprovada e, portanto, de existir, já está a causar efeitos: a expectativa da anistia e da despenalização fez aumentar drasticamente o desmatamento. Essa curiosa eficácia social de norma jurídica ainda inexistente está ligada ao fato de que se trata de uma norma que, se aprovada, legalizará ilegalidades ambientais, especialmente no campo criminal.
Esse tipo de norma sabota a eficácia do ordenamento, na medida em que gera expectativa por anistias aos desmatadores cada vez mais contínuas e abrangentes. Ness sentido, é uma norma que, socialmente, produz ilegalidade em uma cultura cínica em relação às leis. Valho-me de Montesquieu, de passagem do Livro XXIX, capítulo XVI de Do espírito das leis: "Como as leis inúteis enfraquecem as leis necessárias, aquelas que podem ser sofismadas enfraquecem a legislação. Uma lei deve ter o seu efeito, e não se deve permitir revogá-la por uma convenção particular."
Trata-se de uma lei que está a ser feita exatamente no espírito do sofisma, para corroer por dentro o ordenamento jurídico. Ouvi no rádio, no início de maio deste ano, a senadora Kátia Abreu, que migrou para o PSD (partido nem de direita nem de centro nem de esquerda, muito pelo contrário) e manteve seu coração ruralista. Ela afirmou, a respeito da votação iminente do projeto de Código Florestal, que os produtores rurais estavam de boa fé e cumpriam a lei. Opinião absurda; se assim fosse, o desmatamento não teria aumentado drasticamente, com a quase certeza de que o novo projeto traria impunidade.
Por ignorarem essa questão do espírito das leis, e que o espírito desse projeto é a ilegalidade, a senadora e o jornal Estado de S. Paulo harmonizaram vozes afirmando que não se poderia ligar o desmatamento atual a uma lei futura (tolo argumento a que já respondi), ainda mais porque há o corte (termo significativo) temporal de 2008 para a legalização do desmatamento.
O segundo argumento também é risível, pois a lógica jurídico-política dominante é a da obtenção permanente de anistias (o que o grande capital tem conseguido também no tocante aos organismos geneticamente modificados, os chamados transgênicos); a transferência de competências ambientais para os governos estaduais em muito auxiliará na preservação das práticas devastadoras.
Não é coerente que uma lei que não existe ainda esteja condenando ao desaparecimento tantas áreas florestais? O nada está a gerar sua própria semelhança, a devastação.
A votação na Câmara dos Deputados confirma também o desprezo histórico e generalizado da classe política pelos meios científicos e acadêmicos. A Sociedade Brasileira pela Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) publicaram O Código Florestal e a Ciência: Contribuições para o Diálogo, que aconselhou precaução e mais debates e pesquisa - nenhuma alteração legislativa deveria ser feita sem fundamento científico:

B) Todas as proposições feitas deverão estar fundamentadas no conhecimento científico sobre o respectivo tema. Caso o conhecimento requerido para sustentar algumas dessas proposições ainda seja controverso ou não esteja disponível, elas seriam colocadas como pendentes de sustentação científica, para posterior revisão, e incluídas num programa de preenchimento de lacunas do conhecimento, fomentado por instituições públicas de financiamento;

Outra das recomendações desprezadas pelos deputados federais é, obviamente, a da promoção do desenvolvimento sustentável:

F) O conceito principal deverá ser o da construção de uma legislação ambiental estimuladora de boas práticas e garantidora do futuro e que proporcione, como política pública, a construção de paisagens rurais com sustentabilidade social, ambiental e econômica;

Na análise das consultoras legislativas Suely M. V. Guimarães de Araújo Ilidia d aA. G. Martins Juras, podem ser vistos os pontos questionáveis, como a despenalização de condutas (imagino aqui certos pós-modernos de braços dados aos latifundiários, reclamando que não há impunidade no Brasil, e sim punição demais) e a diminuição das áreas de preservação.
O PSOL (que fechou posição contra o projeto) encontrou diversos problemas; cito apenas um deles, que dá a ideia do tamanho da devastação programada por nossos legisladores:

No ARTIGO 130 que isenta as propriedades de até 4 (quatro) módulos fiscais da obrigatoriedade de manter a Reserva Legal nos limites da Lei, o 'Novo Substitutivo" permite o desmate direto, apenas através desse dispositivo de 69.245.404 (sessenta e nove milhões; duzentos e quarenta e cinco mil; quatrocentos e quatro) hectares de florestas nativas (Potenciais Impactos das Alterações do Código Florestal Brasileiro na Meta Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa, Observatório do Clima, 2010).

Provavelmente, a sensação de impunidade generalizada relaciona-se a outro terrível fato do dia, que gerou vaias na galeria do Congresso Nacional, já em situação de deboche completo. O castanheiro e filho da floresta José Cláudio Ribeiro da Silva e sua esposa, Maria do Espírito Santo da Silva, foram assassinados. Ele já falava de seu risco de morte, sentindo-se ameaçado pelo setor madeireiro. Um crime anunciado, que o Estado brasileiro não soube ou não quis evitar.
Podem-se ouvir nesta ligação as manifestações dos excelentíssimos deputados nesse dia de votação; às 15:57:33, irrompem as vaias quando Sarney Filho (PV) anuncia o assassinato e pede providências da Câmara e da Polícia Federal.
Apenas parte do PT votou contra o projeto. O PMDB, que é o partido do vice-presidente, aderiu intensamente à destruição ambiental; mas, nesses assuntos, essa parte do governo contou com a oposição: o alinhamento maciço do PSDB e do DEM à serra elétrica, ainda mais impressionante no caso da emenda n. 164 (que permite aos Estados manterem a atividade agropecuária em áreas de proteção permanente desmatadas até 2008). De fato, abraços até há pouco insuspeitos ocorreram: Paulo Maluf (PP) elogiou Aldo Rebelo (PCdoB), relator do projeto (que já havia sido elogiado pelo vice-presidente, Michel Temer). Para a destruição (lucrativa a curto prazo) do país, direita e esquerda unem-se amorosamente.

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