O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 3 de abril de 2011

Desarquivando o Brasil V: o assassinato de Olavo Hanssen: comunismo e insuficiência renal aguda


Nesta campanha Desarquivando o Brasil, decidi deixar para o final um caso sobre que já escrevi mais de uma vez, a morte de Olavo Hanssen pelos agentes da repressão em 1970.
Ele era um sindicalista ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos e um dirigente do PORT – Partido Operário Revolucionário Trotskista. Ele havia sido aluno de Engenharia na Universidade São Paulo, mas deixou os estudos para se engajar na política sindical. Em 1970, trabalhava em uma indústria química em Santo André.
Em 1º. de maio de 1970, ele foi preso com outros sindicalistas, enquanto distribuía panfletos, por policiais militares, na praça de esportes da Vila Maria Zélia, na cidade de São Paulo, durante uma comemoração autorizada do dia do trabalho. Hanssen foi torturado até o dia 5 de maio. Apesar dos protestos de outros presos políticos no DEOPS/SP, ele não recebeu assistência médica adequada e foi levado ao Hospital do Exército em Cambuci somente em 8 de maio, quando já estava em estado de coma. Em 13 de maio, sua família foi avisada que ele teria se suicidado no dia 9, e que seu corpo teria sido encontrado perto do Museu do Ipiranga.
Escrevi, com Diego Marques Galindo (que era meu orientando de iniciação científica) dois artigos sobre esse caso - um deles foi publicado na revista do Arquivo Público do Estado de São Paulo: Tortura e assassinato no Brasil da ditadura militar: o caso de Olavo Hansen. O outro, sairá em livro sobre a repressão política em São Paulo coordenado por Maria Luiza Tucci Carneiro.
Toda a situação foi um exemplo do cinismo do Estado brasileiro - das autoridades policiais e as militares, sem dúvida, mas também do Ministério da Justiça e das Relações Exteriores, em sustentar teses (no Brasil e no exterior) que colidiam com qualquer critério de verossimilhança. Se Hanssen morreu no Hospital do Exército por suicídio, por que razão o corpo dele teria andado até perto do Museu do Ipiranga para ser encontrado apenas dias depois? Se ele teria se matado ingerindo veneno, por que estranho motivo seu corpo tinha todas estas marcas?

1) Ferimento contuso com perda da pele e células subcutâneas na região superior interna da pele direita;
2) Espoliação localizada na face interna do joelho direito;
3) Pequena escoriação localizada no centro da panturrilha da perna direita;
4) Escoriação localizada na face interna da perna esquerda;
5) Pequena escoriação circular na face anterior e terço superior da perna esquerda;
6) Escoriação localizada na região escrotal esquerda;
7) Pequena escoriação localizada no lado externo do cotovelo esquerdo;
8) Equimose localizada na região pré-cordeal.

Que veneno é capaz de produzir tudo isso? E, se o inquérito queria mesmo apurar a verdade, por que os companheiros de cela não foram ouvidos? Eles contariam (Geraldo Siqueira, por exemplo) que ele foi torturado por alguns dias até entrar em coma, sem receber assistência médica de Geraldo Ciscato, que só determinou que Hanssen fosse levado ao Hospital quando o preso já tinha entrado em coma; além disso que, além da tortura recebida, ainda lhe tenha sido aplicado veneno de rato, o que demonstra que elevado tipo de estatuto a repressão política atribuía aos militantes da esquerda.
Para o juiz que arquivou o inquérito, Hanssen era o próprio culpado de sua morte. Como o sindicalista estava distribuindo, na festa do sindicato, folhetos em que se pedia solidariedade aos povos do Vietnã e de Cuba, o excelentíssimo Nelson da Silva Machado Guimarães concluiu:
[...] a afirmação de que Olavo Hansen, se estava distribuindo os aludidos panfletos numa concentração pacífica de trabalhadores, era, ao mesmo tempo, mais um AGENTE e VÍTIMA do sistema de ideias mais abominável e desumano que a mente humana até hoje elaborou. [grifo do autor]

O comunismo, pois, causaria insuficiência renal aguda (que foi a causa mortis).
Trata-se, obviamente, de um dos casos que estão nos dossiês de desaparecidos políticos editados pela Imprensa do Estado de São Paulo e pelo Governo Federal, Direito à memória e à verdade.
Na minha pesquisa, o que pude acrescentar, e não está nesses dossiês, foi a análise do procedimento aberto na Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra o Brasil por causa da morte desse sindicalista, preso irregularmente dentro de uma festa de primeiro de maio do sindicato.
Trata-se, evidentemente, de afronta direta à liberdade sindical (que foi, de fato, cerceada a todo momento pela ditadura militar, para o que contou com uma ajuda do Supremo Tribunal Federal - na minha tese analiso a funesta história).
O caso tomou uma dimensão internacional também na Comissão Interamericnaa de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos) - que acabou condenando o Brasil (lembro que, nessa época, ainda não existia a Corte Interamericana).
O governo brasileiro foi capaz de enrolar a OIT (e isso foi usado como "argumento" na OEA), o que era um sinal, na minha análise, das limitações dessa organização internacional em ver a questão do trabalho dentro do âmbito mais largo dos direitos humanos.
Cecília MacDowell Santos estudou o caso na OEA no livro Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2 volumes, 2009), de que é um dos organizadores; James Green também o fez, verificando o impacto na opinião pública estadunidense, em Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985 (São Paulo: Companhia das Letras, 2009).
Sugiro também que vejam a foto de Hanssen e uma homenagem no arquivo da Federação dos Químicos, a Fequimfar. E que consultem os portais do Centro de Documentação Eremias Delizoicov e da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, e do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ.

P.S.: O sobrenome de Olavo Hanssen foi retificado segundo nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html

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