O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
sábado, 2 de abril de 2011
Desarquivando o Brasil IV: o exemplo da Argentina: entrevista com Julián Axat
Já entrevistei o poeta, jurista e editor argentino Julián Axat quando ele esteve no Brasil para falar no Seminário sobre Exílio e Migrações Forçadas em 2010; o vídeo pode ser visto aqui. Falo com ele novamente em razão da Campanha Desarquivando o Brasil: a Argentina continua tendo um papel relevante e inovador no tocante à justiça de transição.
Axat atua como escritor e jurista nesse campo. Na entrevista, ele trata da HIJOS, organização que congrega os descendentes dos desaparecidos (como Axat, muitos seguiram o caminho militante já aberto pelas Madres e pelas Abuelas da Praça de Maio), da coleção Los detectives salvajes, que recupera escritos das vítimas do terror de Estado, e dos julgamentos dos agentes da repressão e do genocídio.
Pádua Fernandes - Como você é membro da organização HIJOS, pergunto-lhe como ela atua e atuou em favor do direito à memória e à verdade na Argentina.
Julián Axat - Hijos nasce em 1994 como organização. Participamos junto com os órgãos históricos de direito humanos no lema triplo: “memória, verdade e justiça”. Porém nossa forma particular de expressar-nos era “se não há justiça, há escracho”. O indulto aos militares viabilizava essa forma de protesto (ou forma de justiça popular) sobre o corpo e o contexto daquele que o Estado havia deixado impune.
Porém o Estado em 2003 faz seus os lemas de “Memória, verdade e justiça”. Eles passam a ser uma verdadeira Política de Estado com continuidade: o julgamento de repressores e seu encarceramento; a atribuição de lugares da memória; a reconstrução documental de cada desaparecido; a reescritura do prólogo do Informe Nunca Más que modifica a versão sobre “os dois demônios” que desde 1983 se pretendeu contar à sociedade; a educação sobre o tema às gerações mais jovens.
Hoje os Hijos tratamos de ir mais além e sustentamos (nos julgamentos) que, desde março de 1976, na Argentina houve um fato com as características de um Genocídio. Isto é, um plano sistemático para eliminar a dissidência política pelo método da tortura-desaparição-extermínio de grupos humanos em campos de concentração, com efeitos difusos no restante da sociedade civil e nas novas gerações. E, para isso, já não basta a palavra Terror de Estado e o conceito de Crime contra a Humanidade. É necessário analisar os Instrumentos Internacionais sobre o Genocídio pensados pela comunidade internacional depois do Nazismo.
Até aqui se pode falar da reconstrução de um relato compartilhado com elementos certamente objetivos. Mas também estamos trabalhando no nivel da subjetivação e transferência individual da memória. Hijos não é somente uma organização, mas um fato social que irrompe de muitas maneiras: H.I.J.O.S, hijos, hij@S. Nem tudo é consenso e compromisso coletivo. Memória individual e grupal são uma dialética permanente; uma ida e volta. Pluralidade necessária, válida. Cada lugar, cada filho, escolhe sua forma (ou dispositivo) para mostrar-se ou aderir, comprometer-se com o mundo e a história. No final, todos os rostos de Hijos formam um puzzle identitário cuja coincidência geracional alivia na door ou alegria de reconstruir a memória de nossos pais. A necesidade de contar politicamente a história (a luta) que nos deu à luz.
PF -Peço para que explique como a coleção "Los detectives salvajes" age no tocante à memória das vítimas do terrorismo de Estado.
JA- Los detectives salvajes é uma coleção de poesia que nasce como um projeto de dois filhos de desaparecidos em busca de toda uma geração silenciada e exterminada a resgatar. Esse é o trabalho de armar o puzzle que te dizia na tua pergunta anterior. O trabalho de grande Frankenstein da memória feita de andrajos, a que sempre falta uma peça para completar o rosto do monstro. Somos expertos profanadores de tumbas buscando cadáveres literários escondidos pelo terror (temos uma equipe forense poética). Com os cacos desses materiais linguísticos encontrados no nervo da noite tratamos de sustentar algumas certezas daquilo que não se sabe ou resulta inominável.
E, a partir do lugar que ocupa o registro da poesia, mergulhamos na trama de uma língua onde as palavras do perpetrador (ou cúmplice civil) também constituíram o veículo do terror e o engano. As palavras (insisto, civil e literariamente cúmplices) foram forçadas a dizer o que nenhuma boca humana deveria ter dito, nunca, palavras com que nenhum papel fabricado pelo homem deveria ter-se manchado jamais: como nomear a desaparição?
Recompor uma tradição da voz implica recuperar essa língua anterior amputada para fabricar nosso testemunho vicário. Recuperar a voz de nossos padres a partir da voz poética nossa, como filhos, é uma forma de nos reencontrarmos com o que fica de sua vida, ou, como diz Walter Benjamin: nos apossarmos da recordação tal e qual reluz em um instante de perigo.
Os versos que falam da ausência fantasiam a possibilidade de um resgate fantástico ao mesmo tempo em que criam um espaço real de encontro impossível. São versos que põem na boca do testemunho duas gerações fraturadas pelo mal radical que pressente o indizível, o silêncio no dizer de Paul Celan, mas que –apesar de tudo- tenta comunicar-se com novas vibrações e experiências.
Este trabalho da voz implica sair de uma vez por todas do lugar de filho-vítima-vitimizado-ofendido; para assumir o papel de filho fazedor da história, filho sujeito político-ofensivo.
PF- Como você avalia os avanços da Argentina nos julgamentos dos responsáveis pelo terrorismo de Estado?
JA- Avalio-os muito bem. O único problema é que as leis de impunidade que impediram julgar militares, policiais e civis fazem que hoje, depois de 29 anos, muitos estejam mortos, ou com incapacidade senil, ou enfermos. De todo modo, os julgamentos são um grande avanço e uma marca profunda no tecido social, e, simultaneamente, uma mensagem às novas gerações que não os veem como um fato distante, e sim presente em suas vidas.
No princípio, tivemos o julgamento de pessoas célebres, de forma individual; hoje estão sendo julgados grupos de pessoas em razão de centros clandestinos de detenção. Também são julgados civis cúmplices, eclesiásticos, médicos etc. Toda a estrutura do terror é submetida a julgamento. Todavia, ficam pendentes julgamentos de membros do Poder Judiciário com fortes vínculos com a ditadura. O problema é que muitos desses funcionários ainda se encontram ativos, ocupando cargos importantes, e têm muito poder. Também fica pendente o julgamento de civis ou pessoas jurídicas que cumpriram funções indiretas, por exemplo en meios de comunicação famosos, empresas, bancos, ou então vizinhos que fizeram o papel de delatores etc.
Volto à ideia que te mencionei no princípio, a necessidade de que se introduza o julgamento dos fatos no marco de um “Genocídio”, tal como o entendeu o Tribunal Federal Nº 1 de La Plata, na condenação do repressor Etchecolatz em 2006 (http://www.derechos.org/nizkor/arg/ley/etche.html) Nesse sentido, a obra do antropólogo Daniel Feierstein talvez seja a mais importante que se escreveu para abordar o caso argentino, me refiro ao texto El Genocidio Como Practica Social.
Muitos de nós, Hijos, somos querelantes nas causas criminais e acompanhamos dando impulso e ferramentas de análise, para que os julgamentos sejam históricos, que a sociedade os sinta como um antes e depois com efeitos concretos para solidificar a democracia e que, tendo noção do horror, ele não volte a se repetir.
Para isso, é muito importante que os genocidas possuam garantias constitucionais, que possam defender-se, que possam falar e dar seus pontos de vista. Os julgamentos são justos no marco de um Estado de Direito, e não são um teatro de castigo como os repressores objectam nas audiências.
Os repressores têm uma oportunidade inédita de defesa e humanidade no trato, que é o que eles não deram às pessoas que executaram e fizeram desaparecer. As vítimas não queremos vingança, tampouco reconciliação como quer a igreja e os setores da direita. Só queremos uma instância de justiça que é a que eles não deram. Só a justiça fecha parte da ferida (do luto), só a justiça tira nossos pais de um lugar difuso, de um purgatório, da instância fantasmática.
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