O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Terra sem lei: Belo Monte, OEA, índios e a fratura do arco-íris

Em um poema um tanto grotesco do Cinco lugares da fúria, que inseri neste blogue a propósito de outro racismo, escrevi este edificante diálogo:

- Meu filho ontem queimou um índio.
- Não é uma espécie protegida?
- Mas ele achava que era um mendigo.
- Meu filho ontem queimou um índio.
- Estudando História do Brasil?
- Juventude americanizada!

Já que os racistas estão abrindo a boca no Dia do Índio, queria rascunhar umas notas.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos outorgou, em primeiro de abril de 2011, uma medida cautelar contra o governo brasileiro a propósito da eventual usina hidrelétrica Belo Monte; trata-se do caso MC 382/10 - Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil:

A CIDH solicitou ao Governo Brasileiro que suspenda imediatamente o processo de licenciamento do projeto da UHE de Belo Monte e impeça a realização de qualquer obra material de execução até que sejam observadas as seguintes condições mínimas: (1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre, informativa, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares; (2) garantir, previamente a realização dos citados processos de consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos; (3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingú, e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona, como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças como a malária.

Como se sabe, a medida causou uma reação furiosa do governo brasileiro. Em cinco de abril, o Ministério das Relações Exteriores divulgou a nota n. 142 afirmando que a decisão da Comissão é precipitada e injustificável. Afirmando ter seguido todas as exigências legais para a construção, adotou um discurso obviamente isolacionista no tocante à internacionalização dos direitos humanos:

O Governo brasileiro tomou conhecimento, com perplexidade, das medidas que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicita sejam adotadas para “garantir a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas” supostamente ameaçados pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
O Governo brasileiro, sem minimizar a relevância do papel que desempenham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, recorda que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão pela qual sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdição interna.

A medida cautelar foi solicitada por organizações não governamentais, e o governo brasileiro havia sido notificado para informar a respeito (até o sítio do MRE registra isso), pelo que a perplexidade é estranha e pode soar à incompetência.
O que certamente soa à incompetência é o final da manifestação oficial, "sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdição interna". Isso certamente não é verdade no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, já que a simples inutilidade desses recursos já legitima a atuação da OEA - será que o governo desconhece a obra de Antônio Augusto Cançado Trindade? Ele, que explica muito bem essa questão do esgotamento dos recursos internos, foi presidente da Corte Interamericana e hoje está na Corte Internacional de Justiça. Provavelmente desconhece, já que ele foi professor no Itamaraty e consultor jurídico do MRE...
De qualquer forma, a desculpa oficial é ridícula, pois a alegação é descabida: em caso de medida cautelar, a Comissão pode agir sempre que houver riscos de danos irreparáveis, mesmo antes daqueles recursos internos. Transcrevo esta parte do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, caso alguém do governo tenha interesse no assunto:

Artigo 25. Medidas cautelares
1. Em situações de gravidade e urgência a Comissão poderá, por iniciativa própria ou a pedido da parte, solicitar que um Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis às pessoas ou ao objeto do processo relativo a uma petição ou caso pendente.
2. Em situações de gravidade e urgência a Comissão poderá, por iniciativa própria ou a pedido da parte, solicitar que um Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis a pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, independentemente de qualquer petição ou caso pendente.
3. As medidas às quais se referem os incisos 1 e 2 anteriores poderão ser de natureza coletiva a fim de prevenir um dano irreparável às pessoas em virtude do seu vínculo com uma organização, grupo ou comunidade de pessoas determinadas or determináveis.
4. A Comissão considerará a gravidade e urgência da situação, seu contexto, e a iminência do dano em questão ao decidir sobre se corresponde solicitar a um Estado a adoção de medidas cautelares. A Comissão também levará em conta:
a. se a situação de risco foi denunciada perante as autoridades competentes ou os motivos pelos quais isto não pode ser feito;
b. a identificação individual dos potenciais beneficiários das medidas cautelares ou a determinação do grupo ao qual pertencem; e
c. a explícita concordância dos potenciais beneficiários quando o pedido for apresentado à Comissão por terceiros, exceto em situações nas quais a ausência do consentimento esteja justificada.
5. Antes de solicitar medidas cautelares, a Comissão pedirá ao respectivo Estado informações relevantes, a menos que a urgência da situação justifique o outorgamento imediato das medidas.
6. A Comissão evaluará periodicamente a pertinência de manter a vigência das medidas cautelares outorgadas.
7. Em qualquer momento, o Estado poderá apresentar um pedido devidamente fundamentado a fim de que a Comissão faça cessar os efeitos do pedido de adoção de medidas cautelares. A Comissão solicitará observações aos beneficiários ou aos seus representantes antes de decidir sobre o pedido do Estado. A apresentação de tal pedido não suspenderá a vigência das medidas cautelares outorgadas.
8. A Comissão poderá requerer às partes interessadas informações relevantes sobre qualquer assunto relativo ao outorgamento, cumprimento e vigência das medidas cautelares. O descumprimento substancial dos beneficiários ou de seus representantes com estes requerimentos poderá ser considerado como causa para que a Comissão faça cessar o efeito do pedido ao Estado para adotar medidas cautelares. No que diz respeito às medidas cautelares de natureza coletiva, a Comissão poderá estabelecer outros mecanismos apropriados para seu seguimento e revisão periódica.
9. O outorgamento destas medidas e sua adoção pelo Estado não constituirá pré-julgamento sobre a violação dos direitos protegidos pela Convenção Americana e outros instrumentos aplicáveis.

Não sei se o governo já encaminhou o pedido previsto no parágrafo 7o. No momento, vemos que, contra os direitos humanos, contra o meio ambiente e contra os índios unem-se governistas e oposicionistas; trata-se mesmo de uma causa comum. O senador Flexa Ribeiro, líder do PSDB, maior partido de oposição, chegou mesmo a dizer que decisão da OEA era "uma intromissão na soberania no país" ecoando o discurso isolacionista e contrário aos direitos humanos. O PC do B, membro da base aliada, bradou que "o Brasil não reconhece em nenhuma autoridade externa condições para criticar ou orientar suas políticas".
Tal postura parece ser a mesma da secretária nacional de direitos humanos, Maria do Rosário, que julgou ver "agilização desmedida" (cito do blogue da Belo Monte!) na ação da OEA. Trata-se de um elogio involuntário, na verdade: o mecanismo das medidas cautelares somente faz sentido se for ágil...
Aconselho a leitura do blogue do Xingu Vivo e o texto do procurador da república Felicio Pontes Junior:

[...] o Congresso simplesmente ignorou a legislação nacional e internacional e inventou um processo sem ouvir os indígenas. Daí a devida preocupação da Organização dos Estados Americanos com o caso Belo Monte.
[...]
Tão grave quanto a falta da oitiva dos indígenas pelo Congresso é o argumento do governo exposto ao contestar uma das ações promovidas pelo Ministério Público Federal. Diz que não é necessária a oitiva porque nenhuma terra indígena será inundada. É verdade. Na Volta Grande do Xingu não haverá inundação. Haverá quase seca, já que a maior parte do rio vai ser desviado, levando ao desaparecimento de 273 espécies de peixes nos 100 quilômetros que passam em frente às Terras Indígenas Paquiçamba e Arara do Maia.

Pero Magalhães de Gandavo, no século XVI, escreveu sobre os índios na América do Sul que "A língua de que usam, toda pela costa, é uma: ainda que em certos vocábulos difere em algumas partes; mas não de maneira que se deixem de entender. Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente." O que hoje se pode dizer é que o Estado brasileiro que está sem lei, nessa violação explícita dos direitos humanos e do direito ambiental, tanto na ordem interna quanto na internacional.
Meu poeminha mencionava a "juventude americanizada"; pois bem. Para terminar esta nota rápida, lembro de outro Estado sem lei, os Estados Unidos, e a combinação de remoção com genocídio que os índios Navajo sofreram em razão dos recursos minerais de suas terras. O brilhante documentário de Maria Florio e Victoria Mudd Broken rainbow, de 1985, conta essa história, ao som da bela canção homônima de Laura Nyro.
Aqui a música, ali o filme.

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