O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Terra sem lei II: A Convenção 169 da OIT e as audiências públicas

Escrevi nesta semana um pouco sobre Belo Monte, por causa da decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a suspensão do processo de licenciamento da usina. E afirmei que, se no século XVI foi dito que os índios não tinham "Fé, nem Lei, nem Rei", hoje se deve denunciar que é o Estado brasileiro que não tem lei, violando tanto o direito nacional quanto o internacional naquela processo de licenciamento.
Lembrei depois de outro poema meio grotesco de Cinco lugares da fúria que possui este trecho:

Eles andam nus como o ovo após a casca.
Não estimam de cobrir sua vergonha. Não lavram nem criam. A estrela que está por cima de toda Cruz é pequena. Entre uma rede e outra, fazem fogueiras.
Acerca das estrelas, tenho trabalhado tudo o que posso, apesar de uma perna que tenho muito mal, com uma chaga tão grande que parece humana. Mando-lhe como estão situadas as estrelas. Mas o grau ninguém pode saber, que de uma coçadura me fez uma chaga maior do que a minha mão.
Estão nus, não têm fé, lei ou rei. Precisamos quebrar a casca deles. Quando os ferirmos, terão a lei em seu corpo.

Em seu corpo, a inscrição de uma terra sem lei. Mas devo apontar o que, juridicamente, está em jogo.
A Comissão deferiu uma medida cautelar, provisória, que ocorre quando há risco de danos sérios, irreparáveis, aos direitos humanos - que é exatamente o que pode ocorrer em Belo Monte; não se trata de decisão definitiva, e o Estado pode contestá-la.
O governo brasileiro reagiu agressivamente, questionando a autoridade da Comissão - como um país sem lei. Possivelmente, a retirada da candidatura de Paulo Vanucchi à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no dia 7 de abril, ocorreu como retaliação do governo brasileiro - o Centro para a Justiça e o Direito Internacional também interpretou o gesto como uma tentativa de questionar a legitimidade da Comissão.
Todavia, o governo acabou por pedir mais tempo para responder à OEA.
Resta a ver o que resultará do jogo diplomático.
Uma das normas internacionais incorporadas ao direito brasileiro que o Brasil estaria violando é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Questiona-se se as audiências públicas a respeito do projeto da usina, com a população interessada, foram realmente sérias e efetivas. Esse direito está previsto na Convenção (e no direito brasileiro, o que é esquecido pelos patriotas da devastação):

Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, por meio de suas instituições representativas, sempre que se tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente;
b) criar meios pelos de poderem esses povos participar livremente, pelo menos na mesma proporção que os demais segmentos da população, em todos os níveis de tomada de decisões em instituições eletivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis por políticas e programas que lhes digam respeito;
c) criar condições para o pleno desenvolvimento de instituições e iniciativas desses povos e, quando for o caso, prover os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser feitas, de boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo ou consentimento com as medidas propostas.

As audiências públicas não existem para que o povo tenha que dizer sim - autoridades que dizem que, de qualquer forma, o projeto será realizado, mostram apenas sua má-fé com isso. Sigo Rancière nisto: as audiências preparadas para intimidar o público e mantê-lo desinformado são a própria negação da política em nome da polícia, uma gestão do comum ilusoriamente neutra e técnica que mantenha a desigualdade na partilha.
As comunidades indígenas devem manifestar-se mesmo sobre terras que não ocupam diretamente? Sim. Qualquer pessoa com rudimentos de antropologia saberá que a terra, para o índio, não significa propriedade imóvel ou lote, e que o entorno das terras que ocupam diretamente integram esse meio em que se dá a vivência dessas comunidades. A Convenção o prevê:

Artigo 14
1. Dever-se-ão reconhecer aos povos indígenas e tribais os direitos de propriedade e posse da terra que ocupam tradicionalmente. Além disso, nos devidos casos, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito desses povos de utilizar terras que não sejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais tradicionalmente tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dispensada especial atenção à situação de povos nômades e de agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que se fizerem necessárias para demarcar as terras tradicionalmente ocupadas por esses povos e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse.
3. Procedimentos adequados deverão ser instituídos, no âmbito do sistema jurídico
nacional, para dar solução a reivindicações de terras por esses povos.

Outra fonte jurídica importante é o princípio da não-remoção das comunidades indígenas, também previsto na Convenção:

Artigo 16
1. Resalvado o disposto nos parágrafos, a seguir, do presente artigo, os povos indígenas e tribais não deverão ser transladados das terras que ocupam.
2. Quando, excepcionalmente, a transladação e o reassentamento desses povos
forem considerados necessários, só poderão ser feitos com seu consentimento, dado livremente, e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter esse consentimento, a transladação e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos por lei nacional, inclusive consultas públicas, quando for o caso, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de ser efetivamente representados.
3. Sempre que possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram sua transladação e reassentamento.
4. Quando esse retorno não for possível, conforme decidido por acordo ou, na falta de acordo, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, na medida do possível, terras cuja qualidade e situação jurídica sejam pelo menos iguais às das terras que ocupavam anteriormente, e lhes permitam atender a suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Se esses povos preferirem receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser feita com as devidas garantias.
5. As pessoas transladadas e reassentadas deverão ser totalmente indenizadas por toda perda ou dano que tiverem sofrido em conseqüência do seu deslocamento.

O princípio não é absoluto; e a remoção pode ocorrer com autorização em lei, mas somente depois de audiências públicas, e o governo brasileiro parece não estar cumprindo essa exigência. Vejam este vídeo feito na Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados: http://www.youtube.com/watch?v=722cMGyeHFM
Segundo Kant, em À paz perpétua, o princípio da publicidade é garantia do direito público. Se o governo não quer mostrar o que fará, e as autoridades não querem esclarecer, isso não seria sinal de uma possível violação do direito, desta vez de proporções amazônicas?

Nenhum comentário:

Postar um comentário