Neste dia da consciência negra, feriado em algumas partes do país (como no Rio de Janeiro, que foi a primeira ou uma das primeiras cidades a instituí-lo, apesar da oposição do então prefeito Cesar Maia), passei a manhã em um congresso nacional de iniciação científica organizado pelas instituições de ensino superior particulares. Fui acompanhar um bravo orientando, que escreveu este trabalho comigo e foi apresentar um pôster a partir da pesquisa que desenvolvemos sobre a incomunicabilidade dos presos políticos durante a ditadura militar.
Esperava que na instituição houvesse menção ao dia da consciência negra, já que os trabalhos ocorriam em um feriado, mas nada vi a respeito. Resolvi, então, escrever.
Em Cinco lugares da fúria, publiquei um poeminha que é uma espécie de rápida história do Brasil vista pelo prisma da tortura. De fato, estamos em um país socialmente tão autoritário que a democracia política não mudou esse quadro - pelo contrário, tortura-se mais hoje do que na ditadura militar. E os negros estão entre as vítimas preferenciais das forças de segurança, públicas e privadas.
No poema, menciono (seria mesmo necessário fazê-lo) a Revolta da Chibata. Ela continua a perturbar a Marinha brasileira, cuja alma ainda parece nostálgica dos mares oitocentistas.
Nele, tentei homenagear um dos maiores nomes de nossas Forças Armadas, João Cândido, o Almirante Negro cantado por Aldir Blanc e João Bosco (a censura da ditadura militar, porém, impôs a alcunha "navegante negro" no belo samba O mestre-sala dos mares). Vejam Elis Regina cantando a letra original.
Creio que a grandeza não se deve medir pelo número de medalhas ou por titulação e cargos, mas pelo que se fez em prol da dignidade humana. Nesse campo, quantos podem igualar João Cândido, que teve que pagar um preço tão alto por tentar fazer com que a Lei Áurea adentrasse os recintos militares do início do século XX?
Certo poeta carioca afirmou que este poeminha é horrível. De fato, tentei que fosse ao menos terrível.
A pobreza dos recursos deste blogue ou dos recursos mentais deste blogueiro impede que a quebra dos versos longos esteja correta (a estrofação está correta, ao contrário do que ocorre no livro - o editor acabou mudando-a inadvertidamente). Mas o que escrevi é praticamente isto:
NATUREZA-MORTA E RETRATOS CÍVICOS
Ele pintou dois ovos cozidos.
Com isso, representou toda a riqueza de nosso tempo.
Ele fotografou dois ovos cozidos;
eram os olhos do rapaz
com a língua de fora e
sob muitos calçados
alheios.
Com isso, reproduziu as virtudes heroicas de nosso tempo.
Ele xerocou a imagem de dois ovos cozidos;
eram os olhos do rapaz,
um deles frito
para alimento de ninguém,
ou seja, para a justiça, que ordena, acertai na nuca os cem e dez e um covardes ajoelhados, amarrados, ou desacordados, mas antes
deixai que os seus sexos copulem pela última vez com a boca agora humana dos cães;
a hora da água sanitária
fará esquecer os líquidos anteriores,
e, para os eleitores, a taça de tudo
saberá a vinho.
Com isso, imitou o agronegócio de seu tempo.
Ele colou na parede propaganda de ovos recortada de jornais.
O rapaz não os leu,
e não sabia daquele navegante em mar imenso, que,
após duzentos e cinquenta chibatadas dos oficiais
(o prêmio incontável da liberdade),
foi anistiado pelas armas da república, isto é, jogado à cela com a multidão
e, sem comida ou água, mas coberto da cal, branca como os oficiais,
sobreviveu por ingratidão contra a cal,
enquanto os companheiros fuzilados
eram lançados para enterro na boca então humana dos tubarões;
expulso do mar por homens secos,
restando-lhe das ondas carregar no cais cestos com peixes alheios,
não recebeu o prêmio
de não ter descendentes,
nem mesmo
este rapaz, analfabeto por estudar há seis anos na escola estadual Cisne Empalhado, onde negros singram os mares verdes nas poças junto ao limo das paredes. Ele
não lerá isto.
Cumprida a derrota, cumprida a missão.
Com isso, resumiu todo o direito constitucional de nosso tempo.
(Eles andam nus como o ovo após a casca.
Não estimam de cobrir sua vergonha. Não lavram nem criam. A estrela que está por cima de toda Cruz é pequena. Entre uma rede e outra, fazem fogueiras.
Acerca das estrelas, tenho trabalhado tudo o que posso, apesar de uma perna que tenho muito mal, com uma chaga tão grande que parece humana. Mando-lhe como estão situadas as estrelas. Mas o grau ninguém pode saber, que de uma coçadura me fez uma chaga maior do que a minha mão.
Estão nus, não têm fé, lei ou rei. Precisamos quebrar a casca deles. Quando os ferirmos, terão a lei em seu corpo.
A nau se perdeu sem vento forte nem contrário para que tal acontecesse. Séculos depois, ainda somos filhos da deriva.
Com isso, nas Bienais a casca do ovo supera a vanguarda de nosso tempo.)
Ele pegou os dois, esmagou-os na mão, jogou-os na tela;
eram os ovos do rapaz retirados à hemorragia.
O rapaz ainda pôde reconhecer
a imagem que se formava: a bandeira nacional;
a mancha, porém, não era amarela, mas tinha algo do branco e algo do vermelho, porém mais de algo indefinido
e, porque ela não correspondia às cores nacionais,
foi executado em defesa da pátria.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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