O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Por Lobato, direito à literatura e a educação dos educadores

Reli hoje A chave do tamanho e Reforma da natureza, livros da obra para crianças de Monteiro Lobato. O primeiro é bem melhor, com sua ficção científica de quase extermínio da humanidade inspirada pela guerra mundial que grassava.
Os dois livros marcam-se pelo cientificismo, que caracterizava a missão civilizatória que Lobato criou para si no Brasil. A postura antiplatônica e empirista de Emília, a boneca humana, é flagrante.
Em A chave do tamanho, Emília quer acabar com a guerra mundial manipulando a chave da guerra. Porém as chaves que controlavam o mundo não tinham legenda e ela, ao resolver testar uma por uma, fica reduzida a um centímetro de altura logo após mexer na primeira. Havia descoberto a chave do tamanho dos humanos (os outros seres vivos nada sofreram) e tinha ficado pequena demais para desfazer o estrago.
Milhões morreram por causa desse experimento de Emília, alguns sufocados pelas próprias roupas, outros de frio, outros em acidentes (todos os aviões em voo caíram, por exemplo).
Morreram também aqueles que não percebiam que as ideias vêm da experiência e teimavam em manter o mesmo pensamento apesar da mudança no mundo. Por exemplo, o Major, a esposa e a cozinheira, presos à antiga "ideia-de-gato", foram devorados por seu gato Manchinha, que não reconheceu os donos em formato reduzido. Emília tentou ensinar-lhe as virtudes do empirismo, mas o Major, retrato militar dos que têm preconceitos contra os intelectuais, manteve-se irredutível, acreditando que a mansidão da antiga ideia-de-gato seria confirmada agora que os humanos pareciam com ratinhos.
Mais ciência: é um antropólogo, Dr. Barnes (nos EUA, que Lobato admirava), que consegue liderar uma comunidade em Pail City adaptada às novas condições da humanidade, agora devotada à carne seca de minhoca.
O livro faz pensar. Mas por que escrevo "por Lobato"? Não por razões nostálgicas, apesar de tê-lo lido abundantemente na infância, período em que devorei até parte da obra adulta (inclusive O presidente negro, que tanta gente não leu até hoje). Faço-o em virtude do presente, que trouxe, mesmo aos EUA, a onda do politicamente correto. Uma onda que pode restringir o direito à literatura, se logra proibir grandes obras.
Um parecer do Conselho Nacional de Educação, ainda não homologado, de que foi relatora a professora e pedagoga Nilma Lino Gomes, sugere que Caçadas de Pedrinho não deva ser selecionado para o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), ou que receba uma nota de advertência a respeito dos estereótipos raciais.
O procedimento iniciou-se com a denúncia de Antônio Gomes Costa Neto à Ouvidoria da Secretaria de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ele desejava evitar o uso de livros e material didático que promovessem o racismo. Embora o seu pedido se restringisse ao âmbito do Distrito Federal, a questão foi levada ao MEC e ao CNE pela Secretaria.
Não acho a nota necessária: ter lido quase todo Lobato não me fez uma criança racista (isso seria possível, pois há mestiços racistas). Não vejo como os trechos sobre a Nastácia podem propiciar uma educação para o racismo - talvez os próprios adultos estejam querendo projetar sua sensibilidade aqui.
Pode-se dizer que a literatura de Lobato é racista? A questão não é simples, mesmo com os estereótipos raciais, que bem expressam a época tratada (já imagino que logo censurarão Castro Alves por retratar mal a África em Vozes d'África). Lobato transcende-os. Lembro agora da famosa história da violeta branca que fere de morte todas as pretensões de um "orgulho branco".
Pode-se lembrar também da Reforma da natureza, que começa com os líderes europeus, meros repesentantes de povos, chamar os representantes da humanidade para chegar a um acordo da paz. Alguém precisaria falar em nome do universal, acima dos particularismos nacionais, pois o universal é a voz da paz (um momento kantiano de Lobato). Quem são os escolhidos para esse papel? Dona Benta e Nastácia: ginecocracia multirracial cosmopolita! Duas senhoras, uma branca e outra negra, é que promovem a paz da humanidade - e ainda deixam quietinhos Hitler e Mussolini. Nada menos do que isso...
Se alguém acha que Lobato menosprezava as mulheres negras, leia a obra!
Eis o parecer do CNE:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=6702&Itemid=

Denise Bottmann discute-o aqui: http://naogostodeplagio.blogspot.com/2010/11/breique-do-breique-urgente.html

Só não se discutiu o fato de o parecer não ser exatamente bem escrito; como exemplo de frase engraçada, podemos ler: "Portanto, as ponderações feitas pelo Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, conquanto cidadão e pesquisador das relações raciais, devem ser consideradas." Imagino que a professora relatora não pense exatamente que ser cidadão e pesquisador sejam condições que o desqualifiquem. É mais provável que ela, na condição de bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq e professora universitária com pós-doutorado pela Universidade de Coimbra, ignore o significado de conquanto, que é "embora". Quem educa os educadores?
Como o PNBE vai possibilitar o contato com a literatura de muitas crianças que não têm bibilioteca em casa, nem mesmo pais alfabetizados, a escolha das obras é uma questão de prioridade nacional. Merece, por conseguinte, receber melhor reflexão.

Ler a obra! Tarefa também dos professores: aqueles que não leem podem impedir os alunos de entrarem em contato com obras significativas. De fato, a tarefa, às vezes, não é cumprida nem mesmo por quem analisa a obra em questão. Lembro de um exposição de trabalho de um mestrando (não lembro se já era professor) que queria estudar os direitos dos animais na obra de Monteiro Lobato; no entanto, ele via a questão simplesmente no fato de os animais falarem na obra do autor.
O equívoco era manifesto: desde a Antiguidade, encontramos uma literatura que antropomorfiza os animais e faz com que eles falem. Isso não significa biocentrismo nem direito dos animais. Perguntei que obras eram analisadas, mas o pesquisador não soube citar nenhuma e afirmou que se tratava da "obra no geral".
Todavia, a A reforma da natureza foi obviamente feita com propósitos antropocêntricos, Emília é a representante da humanidade (que, aqui, não representa o universal, mas o antropocentrismo...) No livro, os animais não humanos são chamados de anima vile e os humanos, anima nobile. Segue-se, pois, a tradição. Visconde de Sabugosa chega a pensar em criar bois do tamanho de montanhas para o abastecimento de carne!
Mas quem faz o pesquisador pesquisar?
Deve-se lembrar: se nós, educadores e pesquisadores, não nos educarmos nem pesquisarmos, quais serão as condições de efetividade do direito à literatura? Esse direito terá mesmo que se refugiar fora das instituições de ensino e dos ministérios e secretarias de educação e assumir-se como direito insurgente - e logo teremos movimentos do sem-literatura, perseguidos e criminalizados como o MST!

Adendo: Logo após ter escrito isto, Denise Bottmann incluiu este belo texto de Marisa Lajolo e a notícia de que o Ministro Fernando Haddad quer que o parecer seja revisto. De qualquer forma, não se deve deixar o caso morrer! A coisa ainda pode ser homologada, e não sabemos quem será o próximo Ministro da Educação.
http://naogostodeplagio.blogspot.com/2010/11/monteiro-lobato-e-o-parecer-do-cne.html

P.S. de setembro de 2012: A questão está no  Supremo Tribunal Federal, e eu gostaria de voltar a ela, se encontrar tempo. De qualquer forma, aconselho a leitura deste longo texto de Ana Maria Gonçalves, que trata do racismo de Lobato (ela afirma: "Lobato não era quem fizeram que era, e sua declaração de usar a literatura para fazer eugenia nunca deve ser esquecida."); ela não menciona os textos antirracistas do mesmo autor, mas sua argumentação convence-me de que os livros que ela analisa deveriam sair com notas: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/09/10/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/

3 comentários:

  1. "Não acho a nota necessária: ter lido quase todo Lobato não me fez uma criança racista"

    Mais um texto que falha ao não considerar a perspectiva da criança negra.
    Falar da obra de Lobato inteira é digressão.
    Recomendo a leitura:
    http://www.idelberavelar.com/archives/2010/11/nao_e_sobre_voce_que_devemos_falar_por_ana_maria_goncalves.php

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  2. Muito obrigado pelo comentário e pela indicação do texto de Ana Maria Gonçalves, que eu já conhecia e foi, com merecido destaque, publicado na Folha de S. Paulo - ela é uma escritora muito interessante.
    Falei, como escrevi no meu texto, da minha perspectiva de quando era uma criança mestiça. Não acho que meu ponto de vista deva ser desqualificado por não ser negro. Porém, mesmo que eu achasse isso, no meu caso a objeção racialista não me desqualificaria muito, porque qualquer que me veja logo percebe que tenho ascendência negra. Está no meu fenótipo. E eu sofri preconceito por isso na infância.
    E, como criança mestiça, não achei uma digressão ler a obra quase toda de Lobato. Não sei se você está subestimando a obra de Lobato, as crianças ou as crianças negras. E eu penso que quem acha que a nota é necessária está subestimando pelo menos algum dos três e/ou os professores.
    Meus cumprimentos, Pádua.

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  3. Querido Pádua, não tinha lido esse texto sobre Lobato e me alegra muito lê-lo. Concordo tanto com você e dói-me que se queira proibir ou "corrigir" livros em vez de lê-los, devorá-los, discuti-los. Se os professores não lêem, o problema está na não-leitura dos professores, que não têm condições de trabalhar a leitura na escola. Fica mais fácil proibir. Ou "corrigir".
    E a mim sempre assusta que não se pense que o que é certo hoje não o será necessariamente amanhã, e que amanhã quem hoje quer censurar ou proibir poderá ser censurado ou proibido. Me assusta que pensem que "certo" e "errado" são definidos e definitivos, e que haja o "lado do bem", sem discussão.
    E eu, que fui meio criada por Monteiro Lobato, agradeço o texto. E fico triste de saber que tantas crianças poderão não ter acesso a ele.

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