Piauí havia publicado duas longas reportagens, muito boas, em agosto e setembro do mesmo ano: Data venia, o Supremo e O Supremo, quosque tandem, matérias de Luiz Maklouf Carvalho. Por algum motivo, que não me ficou claro na carta, o magistrado afirma que o jornalista incorreu em "inconsequente desonestidade", "fraude pura e simples", e que a revista publica "matérias nefastas". No entanto, parecem exemplos de bom jornalismo aos leitores incautos como eu.
É possível que se trata de um lapso de leitura do magistrado: um sinal disso é chamar a Piauí de "revista literária", o que ela nunca foi, apesar de contar com uma que outra matéria de literatura em cada edição.
Em mais recente momento de desentendimento do magistrado com a imprensa (logo virá mais um, com a edição desta semana de Carta Capital), o jornalista Elio Gaspari, em 3 de novembro de 2010, questionou em sua coluna (publicada em vários jornais do país) a elegância de Gilmar Mendes com os colegas e com o Congresso Nacional durante os debates sobre a constitucionalidade da lei Ficha Limpa.
Buscando provar que Gaspari estava errado nessas acusações e em escrever que Gilmar Mendes queria voltar ao proscênio, o magistrado publicou na Folha de S. Paulo, em 14 de novembro, "Gaspari, a ditadura e a Suprema Corte", acusando o jornalista de "teimosia, despreparo e indulgência"; além disso, Gaspari seria "admirador da ditadura e macaqueador dos americanos". Dessa forma, ele não seria capaz de apreciar as conquistas do STF e do Conselho Nacional de Justiça.
No entanto, o magistrado comete uma impropriedade histórica ao comparar o atual STF com o antigo, "O mesmo e velho Supremo" que teria dado habeas corpus contra os dissidentes políticos perseguidos pela ditadura militar.
Achamos pertinente que ele aponte o continuísmo no STF. O diagnóstico poderia ser estendido ao conjunto do Judiciário brasileiro: entre os que apontaram esse fato, está agora Frederico de Almeida, com sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada por Maria Tereza Aina Sadek, professora da Ciência Política da USP. O trabalho, que parte teoricamente de Bourdieu e do conceito de campo jurídico, pode ser lido aqui: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php
A seção em que analisa a cultura da homenagem, no direito brasileiro, é brilhante; segue "Trajetórias ocultas e imagens construídas", que poderia ser infinita, mas o autor contenta-se com alguns exemplos marcantes. Os dados sobre o ensino jurídico e as elites são impressionantes: há claramente uma "hierarquia dos diplomas" e uma "produção escolar da nobreza togada".
Não vou comentar sobre a tese aqui (estou acabando de lê-la), mas deve-se logo dizer que se trata de um trabalho importante, e que se entende que tenha sido produzido na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) e não no Largo de São Francisco.
O trabalho aponta essa continuidade nas elites jurídicas. Entendida nesse sentido, a afirmação do Ministro do STF parece-me irretocável. O problema está na mencionada concessão de habeas corpus. Sob esse aspecto, há uma grande diferença entre a Corte antes e depois do Ato Institucional n. 5, que possibilitou que ela fosse ceifada de Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, bem como de Antônio Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada, que se aposentaram voluntariamente.
O livro de Osvaldo Trigueiro do Vale, O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976) mantém interesse na análise desse momento, principalmente pelos depoimentos que colheu dos juristas envolvidos. Em pleno governo Geisel, pôde escrever sobre os efeitos do AI-5 e do regime:
No momento o Brasil vive o papel de nação subdesenvolvida e o amontoado de leis inconstitucionais atestam que não descobrimos o caminho da estabilidade político-social e econômica.
Nesse quadro, mais de cinco anos depois de modificada a Constituição de 1967, ficaram reduzidas ainda mais as chances de um desempenho mais firme e deliberante do Supremo Tribunal Federal. [p. 152]
O próprio Ministro Gilmar Mendes reconheceu a gravidade da intervenção da ditadura militar sobre o STF: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=101553&tip=UN
O AI-5 suspendeu o habeas corpus para os crimes políticos; além disso, serviu para moldar um Judiciário subserviente. Sobre isso, escrevi um pouco na minha própria tese de doutorado, A produção legal da ilegalidade: os direitos humanos e a cultura jurídica brasileira.
Um dos casos que estudei foi um exemplo prático de submissão jurisprudencial da Constituição ao decreto-lei, que é uma norma típica das ditaduras no Brasil. No caso, o decreto-lei de Vargas que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O STF, na representação de inconstitucionalidade n° 803, na prática julgou-o acima da Constituição para atacar a Convenção n°110 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que previa a liberdade sindical, prevista na Carta de 1969 então vigente, mas cerceada pela CLT.
Na minha tese, entendi esse caso, julgado em 1977 (e exemplar da Corte pós-AI-5), como um dos momentos típicos da jurisprudência do STF contrária ao Direito Internacional dos Direitos Humanos; um caso de construção legal da ilegalidade.
Nesse aspecto, o atual Supremo Tribunal Federal continua uma tradição. Lembro agora da questão da possibilidade de responsabilizar os agentes do terror de Estado na época da ditadura militar.
A questão chegou ao STF com o julgamento da ADPF 153, relativa à lei de anistia de 1979. Também nessa decisão, o Direito Internacional dos Direitos Humanos não foi aplicado, e, como argumentei no Sopro 30, tampouco a Constituição de 1988 foi garantida, uma vez que emenda constitucional à Carta anterior, da ditadura, foi considerada um "limite material" para a eficácia da Constituição democrática. Dessa forma, a transição democrática foi negada, em termos jurídicos, pelo STF:
A noção de justiça de transição diz respeito aos procedimentos que têm como fim a apuração e sanção dos abusos contra os direitos humanos ocorridos em um regime político passado. Suas formas são diversas, como já reconheceu a ONU.[15] No Brasil, no entanto, não se pode falar que ela tem realmente ocorrido, apesar das indenizações pagas a perseguidos políticos e a seus familiares (o que seria a “dimensão reparatória” da justiça de transição[16]). A simples reparação não basta para prevenir novas violações de direitos humanos, e a justiça de transição, embora lide com o passado, o faz para preparar o futuro: uma sociedade com respeito à dignidade humana.
A posição do STF, de que a emenda da Constituição da ditadura militar é superior à Constituição da democracia, significa, politicamente, que não houve justiça de transição porque a transição jamais aconteceu: as normas superiores continuam a ser, segundo o Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelo velho poder autoritário oriundo do golpe de 1964.
Juridicamente, esse combate contínuo à liberdade dá-se pela produção legal da ilegalidade no campo dos direitos humanos. Nessa relação cínica com a eficácia das leis, no "constitucionalismo vigiado" (expressão usada por Victor Nunes Leal), temos certamente fatores de estabilidade das instituições brasileiras.
Felizmente, continuam existindo pontos de abertura na imprensa e na academia (a tese de Frederico de Almeida é um exemplo) que mostram a possibilidade do questionamento dessa estabilidade e, talvez, de sua necessária mudança.
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