O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Antigo Regime e magistratura no Brasil, parte III: Exoneração e República

No Brasil, juízes, depois de adquirida a vitaliciedade (o que ocorre após dois anos), não podem ser desligados da magistratura, mesmo em caso de crime, segundo o entendimento predominante do que prevê a Constituição.
Ideli Salvatti, quando Senadora, apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 89/2003 para mudar esse quadro, referindo-se também aos membros do Ministério Público. Já escrevi sobre ele aqui. No artigo 3º da PEC, encontramos o cuidado de que as novas regras não se apliquem aos magistrados e membros do Ministério Público já vitalícios na época de sua promulgação.
A PEC foi aprovada no Senado Federal em 15 de julho de 2010. Seguiu para a Câmara dos Deputados, onde recebeu o número 505/2010: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=483905
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Deputado Federal Eliseu Padilha, elaborou parecer, em 10 de outubro de 2010, que opina pela inconstitucionalidade da PEC. Ele ainda será votado na Comissão.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que sua influência foi determinante para o posicionamento de Padilha, e eu tenho certeza disso: http://www.amb.com.br/?secao=mostranoticia&mat_id=21649
O momento forte da argumentação do parecer reproduz a visão da AMB:

[...] a proposta em exame fere limite material implícito imposto ao poder reformador pelo constituinte originário, pois embora não haja menção expressa à vitaliciedade da magistratura como tal, a mesma decorre do sistema adotado pela Constituição, em que deu-se ao Poder Judiciário a necessária independência para o julgamento das lides que lhe são trazidas. Essa independência do magistrado é garantida exatamente pelos princípios da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio (art. 95, I a III – CF).


A Constituição prevê, como limites materiais às emendas constitucionais, ou seja, como previsões que não podem ser alteradas, a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Estes, significativamente, não são mencionados pelo relator: "A proposta de emenda sob exame não é tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, nem a separação dos Poderes."
A exoneração de, por exemplo, magistrados corruptos ameaça a República, como pretende o Deputado – ou ameaça esta República? A pergunta merece ser posta.
Se a resposta é afirmativa, vê-se que malogra um dos direitos fundamentais que a Constituição deseja proteger, e que o parecer esqueceu de mencionar: a igualdade dos cidadãos perante a lei. Se os magistrados não fossem "mais iguais", poderiam ser exonerados a bem do serviço público quando dele se servissem para seus interesses pessoais, e não para os da coisa pública.
Por conseguinte, a ideia de república presente no parecer está esvaziada da moral republicana, que a PEC de Salvatti queria estabelecer.
É interessante comparar esse trâmite legislativo com o que ocorreu recentemente na França. A lei orgânica da magistratura francesa previa, além da aposentadoria compulsória, a exoneração (révocation) do magistrado, com ou sem direito à pensão (a prestação previdenciária), no parágrafo 7º do artigo 45.
Essa lei foi modificada em 22 de julho de 2010, e a expressão "avec ou sans suspension des droits à pension" (com ou sem suspensão dos direitos à pensão) foi suprimida.
O debate no Senado foi ilustrativo: o governo Sarkozy queria manter a possibilidade de suspensão dos direitos previdenciários, que raramente foi aplicada. Os Senadores foram contrários. Nicole Borvo Cohen-Seat argumentou que se tratava de pena desproporcional: se o funcionário público contribuiu para sua aposentadoria, ela não lhe deveria ser tirada. Jean-Pierre Sueur alegou que tal sanção violaria a Convenção Europeia de Direitos Humanos, segundo o entendimento que o Conselho de Estado francês já havia exposto a respeito dos outros funcionários públicos. Nem mesmo para os criminosos comuns havia essa possibilidade de perda da aposentadoria!
No entanto, a pena de exoneração foi mantida. Não havia dúvida nenhuma a respeito, a França continua a ser uma república. O que, portanto, a AMB quer evitar no Brasil?

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