O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Bartoli, música, profanações

A Folha de S. Paulo publicou em 3 de janeiro deste ano trechos de interessante matéria do jornal The Guardian com a meio-soprano Cecilia Bartoli. O artigo, completo, é muito mais interessante do que a mutilação que saiu no jornal brasileiro, e pode ser lido nesta ligação: http://www.guardian.co.uk/music/2010/dec/23/cecilia-bartoli-mezzo-soprano
Ainda não pude vê-la ao vivo. Mas não vou negar que ela é um dos maiores intérpretes do canto lírico de hoje - entre as cantoras, a outra que acompanho é Anne Sofie von Otter (também meio-soprano). Mais do que isso, Bartoli reservou seu lugar na história pelo que já fez. Não se trata apenas da voz, mas da inteligência e da pesquisa com que encontra seu repertório.
Pesquisa: pois ela optou não pelo caminho fácil, passar a vida cantando Cherubino, Dorabella, Rosina, Carmen etc. Em vez dos papeis batidos, pesquisou o repertório e gravou diversas árias que nunca tinham sido registradas em disco: de Vivaldi, Mendelssohn, Pacini, Gluck, Salieri (o compositor italiano que alguns, por causa de um filme idiota que ganhou umas estatuetas em Hollywood, pensam que teria assassinado Mozart), Caldara, Alessandro Scarlatti...
Lembro de entrevista a um jornalistazinho inglês, na década de 1990, completamente incrédulo diante da afirmação da cantora de que iria se dedicar ao repertório barroco, e não ao romântico (que é mais vendável). Pois foi o que ela fez, ofendendo as expectativas dos críticos, que tentam retrucar afirmando que, se ela faz pesquisas em biblitoecas e recuperas obras relevantes e esquecidas, é porque ela teme ser comparada com outras cantoras! Um exemplo dessa crítica que não perdoa a falta de medicocridade da cantora está aqui.
Ela optou por não ser óbvia. Em pleno ano Mozart, o que ela fez? Enquanto diversos músicos lançaram previsivelmente discos dedicados a esse compositor, ela nos deu "The Salieri Album", com onze árias jamais gravadas!
Ela lançou um disco "Maria" dedicado - a quem, Callas? Não: Malibran, com uma ária composta pela própria diva do século XIX.
Quem sabia que a Igreja Católica, essa instituição esclarecida, havia proibido a ópera em Roma? Bartoli não apenas sabia como gravou árias das cantatas e oratórios que os compositores criaram para sobreviver à censura religiosa. Nesse disco, Opera proibita, temos "Lascia la spina, cogli la rosa", primeira versão de uma famosíssima ária que Händel depois reaproveitaria na ópera Rinaldo, composta para os palcos londrinos, com o título "Lascia ch'io pianga la cruda sorte".
Bartoli é, pois, um espírito que profana a caretice da cultura musical (as capas de seus discos bem o mostram). O fantástico é que ela, mesmo com o repertório fora do esquadro, vende horrores com seus discos. Além da seriedade artística, ela extravasa a alegria de fazer música. Vejam este curto vídeo de 2008: trata-se de concerto em que ela canta o final da ópera La Cenerentola (A Cinderela) de Rossini. Parece ter sido gravado clandestinamente (e só tem a conclusão da ária), o que torna ainda mais autêntica a interpretação. Angelina, a Cinderela conseguiu, nesse momento, vencer todas as adversidades e casar com o príncipe. A alegria da personagem junta-se à da cantora.
A música exige uma agilidade ímpar, o que Bartoli tem de sobra, bem como extensão. Seu volume é pequeno, o que não é um problema, pois ela não canta o repertório em que uma voz grande seria necessária (a Amme de Richard Strauss, a Fricka de Wagner, Amneris de Verdi etc.) Por sinal, na natureza, as vozes muito ágeis geralmente possuem menos volume, e as vozes potentes, menos agilidade. Exceções como Maria Callas, Helge Rosvaenge, Joan Sutherland, que tinham as duas qualidades, são mesmo exceções.
A entrevista no The Guardian toca no problema da composição contemporânea de música clássica ou erudita. Ninguém compõe para Bartoli, ela se queixa. Imagino que alguns compositores enviar-lhe-ão obras depois desse desabafo. Mas a queixa tem sua razão de ser: lembro da esposa de compositor erudito brasileiro, que gosta de música eletroacústica, afirmando para mim que canto lírico "não tem nada a ver". De fato, para esse tipo de música, a voz falada e ruídos já são materiais suficientes.
Ademais, há uma crise na composição de música erudita. Lembro do romance O jogo das contas de vidro - na ordem de Castália, que Hermann Hesse imaginou, não era mais permitido compor obras novas, e a arte reduzia-se ao já feito; como lemos na tradução de Lavinia Abranches Viotti e Flávio Vieira de Souza, "O fato mais importante decorrente dessa nova orientação, ou antes, dessa nova classificação dentro do processo cultural, foi uma ampla renúncia à criação de obras de arte, a gradual separação da vida espiritual das atividades profanas [...]" (São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 13).
Os programas dos concertos e dos teatros de ópera cada vez mais assemelham-se a esse quadro: dedicam-se à música composta pelos mortos, e a composição de hoje é relegada (mas há os de hoje que compõem como os mortos e gozam de um sucesso efêmero).
Hesse talvez tenha visto bem o problema nesse romance. De fato, para criar não é preciso apostar na profanação? E deixar o espaço monástico da ordem? E esse espírito monástico não prevaleceria no público e nos produtores dessa música - como em certos compositores universitários, acadêmicos?
Para terminar, um momento profano. Mais um Rossini, agora uma canção com Thibadeut no piano: Bartoli, como a pequena órfã do Tirol, suplica piedade a Deus.

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