Observem a situação da mulher. Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas burguesas mais avançadas, fez, nesse aspecto, em dezenas de anos, nem a centésima parte do que nós fizemos no primeiro ano de nosso poder. Não deixamos pedra sobre pedra, no sentido literal da palavra, das vergonhosas leis que estabeleciam a inferioridade jurídica da mulher, que criavam obstáculos contra o divórcio e exigiam para ele requisitos odiosos, que proclamavam a ilegitimidade dos filhos naturais e a investigação de paternidade etc.
A mulher continua sendo escrava do lar, apesar de todas as leis libertadoras, porque está esgotada, oprimida, embrutecida, humilhada pelos pequenos afazeres domésticos [...] A verdadeira emancipação da mulher e o verdadeiro comunismo não começarão senão onde e quando comece a luta de massa (dirigida pelo proletariado, dono do poder estatal) contra esta pequena economia doméstica, ou, mais exatamente, sua transformação maciça em uma grande economia socialista. [Versão minha a partir da tradução espanhola das Obras Completas de Lenin publicada pela Editorial Progreso; grifos do original]
Lênin achava que o marxismo bastava como fundamento teórico dessa luta, o que já era insustentável nesses tempos da psicanálise. No entanto, ele deixa claro que o combate pela libertação da mulher deve ser assumido pela esquerda.
Na prática, essa lição de Lênin, que não deveria limitar-se à esquerda marxista (lembre-se, por exemplo, dos que se inspiram em Foucault), é, por vezes, esquecida. Os exemplos, mesmo no Brasil, são diversos. Lembro dos problemas que Gabriela Silva Leite, a criadora da Associação de Prostitutas do Brasil e diretora da ONG Davida e da grife Daspu, teve com a esquerda (mas não com Lula, que ela elogia), principalmente a católica. Para quem não a leu, sugiro Eu, mulher da vida, mais profundo do que Filha mãe avó e puta.
O Partidão (PC), Sérgio Arouca e companhia, os "sanitaristas", não falam sobre Aids. Têm o discurso geral, e pronto, está tudo lá, não entram em "detalhes", da mesma forma que os outros partidos mais "à esquerda". Não vou nem falar da direita, que não merece essa bola toda. Mas é fato que a Aids traz questões imensas, de difícil compreensão para esse povo das esquerdas.
Por não ter cura e expor sexualidades subterrâneas, a Aids suscita questões que passam ao largo das ideias de sociedade produtiva, das mentes que só conseguem pensar nesse modo de produção, que pensam que só deve haver mudança dessas relações e ponto final. (Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 148)
Mencionando sexualidades subterrâneas, deve-se lembrar da homossexualidade. João Silvério Trevisan conta episódios de discriminação em Devassos no paraíso, como este debate na USP em 1979:
Quando, no decorrer da acalorada discussão, um esquerdista ortodoxo (na verdade, uma bicha enrustida que eu conhecia) observou que a luta homossexual não passava de uma escamoteação da luta de classes, não contive minha irritação: subi numa cadeira e pedi às pessoas que relatassem fatos concretos de como nós homossexuais éramos escamoteados justamente em nome da luta de classes. (Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 344. Grifos do original)
Ainda é necessário lembrar o fato óbvio de que a discriminação contra prostitutas e travestis pobres não ocorre apenas na dimensão de classe social. Escrevi um poema que partia disso em Cinco lugares da fúria, que pode ser lido no Algo a dizer. Conto nele a história de Páti, a patética do parque, uma heroína com soco inglês.
Discursos sexistas fizeram-se ouvir no ano eleitoral de 2010, o primeiro no Brasil em que a quantidade de votos em homens candidatos à presidência da república, todos eles reunidos, foi inferior aos números das candidatas. Tais discursos serão repetidos durante o governo de Dilma Rousseff. Que eles venham de setores da direita, é esperado.
Que também venham da esquerda, não deve causar surpresa, como se pode ler nesta discussão de que participaram bravamente, entre outros, Lola Aronovich e Idelber Avelar.
Não deixa de ser significativo que o discurso da "divisão das esquerdas" seja usado nessas horas para combater o combate ao machismo. Nessa advocacia de um pensamento e uma ação monolíticos, há uma vontade de ortodoxia. Sobra repressão e falta imaginação a esses grupos que tentam reduzir a riqueza multifacetada do desejo.
Termino, pois, com Foucault: "O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de chegar a uma vida criativa." (Dits et écrits, Paris: Gallimard, tome II, 2001, p. 1554)
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