A ordem partiu do Ministério do Exército em 1970, isto é, na época do governo do general Garrastazu Médici.
Isso fez-me recordar que, em dezembro de 2010, formou-se uma turma de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) com o nome desse antigo comandante das Agulhas Negras, ex-delegado brasileiro na Junta Internacional de Defesa Brasil-Estados Unidos e sucessor de Costa e Silva no SNI e também em outro cargo.
O nome foi escolhido bem antes da formatura, no primeiro ano da turma. Não se trata, pois, de homenagem desencadeada pela eleição da presidenta Dilma Rousseff, que conheceu por dentro a arbitrariedade das forças de segurança de Médici (e a elas sobreviveu).
A cerimônia de posse levou a um pequeno escândalo, em razão do discurso do eterno ministro Nelson Jobim, cuja fala, ao lembrar da submissão das Forças Armadas pelo Poder Civil, não foi bem aceita por todos os militares.
Creio que o episódio na AMAN demonstra alguma nostalgia por certos valores que estruturaram a formação das Forças Armadas no brasil. É significativo que isso tenha ocorrido em uma instituição de ensino, pois é para esse tipo de instituição que devemos olhar se queremos ter pistas sobre o futuro. Neste caso, um futuro que se deseja à imagem e semelhança do passado.
Hildegard Angel inquietou-se com o acontecimento.
Há motivos para isso? Quem responderia não poderia lembrar do suposto ideário democrático de Médici, amplamente propagandeado na obra A verdadeira paz:
Louvo na progressista Imprensa de meu País, a grande multiplicadora de idéias e o instrumento indispensável à mobilização dos recursos humanos para o nosso desenvolvimento econômico.
Cito apenas essa passagem, mas há outras, que contrastam fortemente com a pesada censura, as vezes legal, existente naquele governo.
O discurso de posse de Médici também negou frontalmente o contexto histórico:
Homem da lei, sinto que a plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. E, para isso, creio necessário consolidar e dignificar o sistema representativo, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.Sobre esse governo, O Alambari, informativo da Academia Militar da Agulhas Negras, na edição especial que indiquei acima, segue a linha negacionista adotada pela propaganda oficial da época e tem a dizer o seguinte:
Promovido a General de Exército em 25 de março de 1969, foi nomeado comandante do III Exército, atual Comando Militar do Sul. Neste mesmo ano, em 25 de outubro, foi eleito Presidente da República pelo Congresso Nacional.
Durante o exercício da Presidência da Republica, toda vez que anunciavam sua presença, em comemorações cívicas e eventos desportivos, era viva e demoradamente aclamado pelo povo, devido à sua integridade de caráter e ao extraordinário progresso econômico alcançado pelo Brasil durante seu governo.
O que é negado nesse trecho? Que não foi o Congresso Nacional que escolheu o general como presidente - a escolha foi prévia, do comando militar, o papel dos congressistas era simplesmente o de dizer "sim" à vontade das fardas. Que a popularidade do general foi construída a partir de intensa propaganda oficial e feroz censura à imprensa (uma das razões pelas quais não podem ser comparadas as popularidades de Médici e Lula, ao contrário do que recentemente pretendeu um grande poeta e mau jornalista). Que houve repressão política, e ela não se contentou com a censura: lançou mão sistematicamente da tortura e do assassinato.
A canonização de Médici é um exemplo de revisionismo? Não gosto muito do termo, pois a revisão, em princípio, nada tem de negativo. Prefiro chamar a casos como esse de negacionismo. Vidal-Naquet tem um livro fundamental sobre o assunto, "Os assassinos da memória: 'Un Eichmann de papel' e outros ensaios sobre o revisionismo" (Les assassins de la mémoire: "Un Eichmann de papier" et autres essais sur le révisionnisme).
Vidal-Naquet bem escreve que o revisionismo, que ele estuda a partir dos que negam o genocídio contra os judeus cometido pelo Estado alemão durante a Segunda Guerra Mundial, não é uma revisão da história:
No campo estilhaçado do discurso histórico, como se situa a empreitada "revisionista"? Sua perfídia é justamente se aparentar com o que ela não é: um esforço para escrever e pensar a história. Não se trata de construir um relato verdadeiro. Tampouco se trata de rever as supostas conquistas da ciência histórica. Nada de mais natural que a "revisão" da história, nada de mais banal. O tempo, ele mesmo, modifica o olhar não somente do historiador como do leigo. (tradução minha, p. 149)O revisionismo quer negar fatos históricos: o genocídio, a repressão política. E o faz a serviço do poder. Também nesse aspecto ele nega o ofício do historiador, e por isso prefiro chamá-lo de negacionismo.
Não por acaso, os historiadores são caçados por regimes políticos autoritários.
Volto, pois, aos documentos e à pesquisa.
Brilhante o texto. A mesma turma anda querendo provar que aqueles que torturam e assassinaram presos sob a guarda do Estado na ditadura militar, são iguais aos que lutaram e, muitas vezes, perderam à vida lutando heroicamente contra às trevas que nos impuseram.
ResponderExcluirObrigado. A diferença também me parece clara. A posição dos que igualam uns e outros é uma tentativa de impor a teoria dos "dois demônios" no Brasil.
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