O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Algo como um poema: As mandíbulas

Isto foi publicado na revista de poesia Telhados de vidro n. 12, de maio de 2009, a convite do poeta português Manuel de Freitas.
Por sinal, ele teve uma antologia lançada no Brasil pela Oficina Raquel, organizada por Luis Maffei. Pode-se ler o que Marcelo Sandmann e Danilo Bueno escreveram sobre ela.
Eis o que escrevi, talvez como um voto para anos vindouros.



As mandíbulas


I

as mandíbulas permanecem no ar

suspensas pela morte
acima da vida

mandíbulas nuas

nenhuma pele as cobre

resta alguma pele entre os dentes
na refeição interminável


II

o sorriso da mandíbula
puro

apenas dentes à mostra

vivo como a rocha depois do apedrejamento


III

como se flutuassem
as mandíbulas permanecem

algumas partidas, outras não

mesmo com os dentes cerrados
elas estão abertas para o mundo
e o abocanham


IV

o beijo da mandíbula

não em outra

mas no ar

que nos circunda

e transmite a carícia seca do cálcio


V

dentro da mandíbula

alguém vive

não você ou eu

a mordida vive
e escolhe sobreviventes


VI

maxilar é o verbo da
mandíbula
acolhe-nos em seu discurso

a cárie não sobrevive à mandíbula

o verbo não sobrevive ao discurso


VII

o céu coberto de mandíbulas,
a noite cai sobre a terra
e os gritos de pânico
vêm do céu e da terra;

o céu coberto de mandíbulas,
não há mais voo, as aves
rastejam de um dente a outro
sem encontrar pouso;

o céu coberto de mandíbulas
morrerá de fome, e seu
esqueleto enfim sem asas
cairá vivo sobre a terra;

as mandíbulas continuarão a reinar
esperando que outro céu nasça
e cresça como o crânio jamais completo


VIII

não se veem mais
as mandíbulas; neste
ar que sufoca a possibilidade da garganta,
neste sol que cega a desintegração da paisagem,
neste vento que leva a matéria ao destino do pó

poderíamos encontrá-las, ou
seriam elas mesmas a impossibilidade
da garganta, a cegueira
integral da paisagem, o pó
como matéria do destino

na cidade erguida no espaço entre os dentes?

não se veem mais
as mandíbulas; teriam abocanhado
o ar ou a visão?

esgotou-se a possibilidade do paraíso
nas mandíbulas suspensas?
porém

é sempre possível imaginares
tua mandíbula na fuga aos rigores da carne
a reinventar o corpo em campo minado.
Tens a arma. Ela te usará.

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