O livro, ironicamente, assume a forma de um tratado internacional. Por essa razão, apresenta um anexo secreto, em referência à diplomacia secreta, velha prática diplomática que o presidente estadunidense Wilson queria banir no primeiro dos seus 14 Pontos.
Nesse discurso, que proferiu em 1918 diante do Congresso dos EUA acerca da reestruturação da ordem internacional no pós-guerra, Woodrow Wilson sustentou bem kantianamente o princípio da publicidade:
1.Open covenants of peace, openly arrived at, after which there shall be no private international understandings of any kind but diplomacy shall proceed always frankly and in the public view.
Mas os EUA, definitivamente, não seguem essa tradição presidencial. Preferem a via de Nixon.
O anexo secreto de À paz perpétua trata do... princípio da publicidade, que surge no livro como garantia do direito público.
Garantia? Pois as grandes potências (vejam que isto que Kant escreveu no final do século XVIII continua a servir hoje) agem de má-fé no cenário internacional e encobrem suas verdadeiras intenções de dominação.
Trata-se do que Kant chama de máximas sofísticas. Escrevi sobre isso também aqui:
As máximas que guiam a política de conquista das grandes potências, afirma Kant (1795, p. 236), são sofísticas (sophistische Maximen) e não podem ter publicidade, sob pena de rejeição: fac et escusa; si fecisti, nega; divide et impera. Um claro exemplo foi o da invasão econquista do Iraque pelos EUA: a potência interventora conquistou e somente depois se justificou (fac et escusa), pois apenas após o fait accompli a ONU aprovou resolução favorável à intervenção; os EUA negaram seus delitos de guerra e afirmaram que a verdadeira razão do conflito era a posse, pelo Iraque, de armas nunca encontradas (si fecisti, nega); finalmente,procederam ao loteamento do Estado conquistado (divide et impera). Todo o tempo, deve-se lembrar, tais máximas foram negadas pelo governo estadunidense, por não resistirem ao exame na esfera pública.
Máxima é o princípio subjetivo da ação. Os documentos revelados por Assange e companhia desmascaram essas máximas. A hipocrisia continua na forma de perseguição que Assange vem sofrendo: oficialmente, trata-se de crimes sexuais. Mas qual é o verdadeiro fim dessa ação? Amazon, Visa e outros instrumentos do imperialismo estadunidense estão imbuídas apenas da dimensão sexual do puritanismo fundador daquele país?
A perseguição global faz também recordar outra advertência de Kant em À paz perpétua: não deve existir um Estado mundial, pois ele geraria uma tirania em toda a Terra.
Trata-se de uma afirmação muito mais sensata do que o pensamento de que a guerra decorria da pluralidade de Estados - o Estado único traria o fim das disputas interestatais. Para quem se pediria asilo no Estado global?
Mesmo sem esse Estado, as garras globais da tirania estão presentes: é de pasmar que somente Lula, dentro dos poucos dias de mandato que lhe restam, tenha sido o único chefe de Estado que realmente manifestou-se a favor deste novo prisioneiro político estadunidense.
É de notar-se também que a imprensa tem traído sistematicamente a esfera pública. O comportamento de vários meios de comunicação e dos lacaios que neles trabalham não surpreende a nós brasileiros: ainda são muito vívidos episódios lamentáveis da recente campanha eleitoral no Brasil, como divulgação de fichas falsas, bolinhas de papel de destruição em massa etc. Já sabemos que o princípio dessa imprensa não é a liberdade de expressão, mas a censura.
Esse princípio que anima os negócios da comunicação verifica-se também na capital dos negócios, os EUA: o Iraque mostrou ao mundo como a imprensa estadunidense bate continência ao governo quando assim é ordenado. Por que não? Ela também segue a lógica do capital.
Lógicas e práticas novas, disso precisamos, globalmente. As reações de resistência contra o ataque a Wikileaks parecem vir desse tipo de criatividade - tanto da ação dos Anônimos quanto a de tradicionais jornais de esquerda, como o Libération, que também está a hospedar os documentos secretos. Nasce uma nova forma de cosmopolitismo, que deveria ser pensado a partir da publicidade, e não da hospitalidade (como queria, a meu ver erronamente, Derrida)?
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