O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Insurgência, Godard e Film Socialisme

Não é que Jean-Luc Godard seja à prova de tolos – certamente há os tolos de Godard, talvez eu esteja entre eles. Porém, os tolos de outra espécie geralmente não conseguem ficar até o fim em seus filmes: a repugnância, reação estomacal, impede a compreensão crítica.
Ontem fui ver Film Socialisme em uma pequena sala no Rio de Janeiro: dos 23 espectadores, 7 saíram antes do final. Um casal de idosos o fez desnorteadamente – dirigiram-se para o lado oposto ao da saída, e a senhora perdeu-se do marido e acabou diante da parede.
Não sei se tolos, mas desnorteados ficaram, o que é um bom efeito de Godard. O filme abre-se com um diálogo entre pessoas que não vemos: o dinheiro é um bem público; assim como a água?; (pausa) exatamente. E a imagem do mar em movimento repete-se em diversos momentos do filme-manifesto, que é dividido em partes e não é nada linear, como outros do cineasta.
O fim da URSS, a crise da Palestina e o colapso da Europa são abordados no filme-manifesto (manifesto vem de mão, afirma-se, e Godard quer atingir tudo o que puder manipular). A Grécia ou Hélade, onde a crise é talvez mais visível, vira Hélas e Hell as (por sinal, os diálogos e textos em várias línguas não são traduzidos: precisei da consultoria do poeta Fabio Weintraub para entender o texto em hebraico; não precisei para os diálogos em alemão, que são curtos e muito simples: Scheiße, Frankreich, por exemplo, mas mereciam tradução).
Para uma descrição do filme, veja-se o que Marcelo Ribeiro fez: http://incinerrante.com/2010/12/film-socialisme-os-fantasmas-da-alegoria/
O que é mais interessante, no entanto, é o modo de produção: como outros filmes de Godard, ele é construído à base de citações (pensei em Nouvelle vague), textuais e visuais. Até um conhecido vídeo no You Tube de um diálogo entre gatinhos vai parar no filme.
O modo de produção é a mensagem. Não há direitos do autor, mas deveres do autor, afirmou Godard em entrevista. Esse modo de produção é apresentado como um direito insurgente. Em mais um lance irônico do filme (não contarei o final, que é bárbaro), a advertência do FBI contra cópias piratas é seguida de uma frase-manifesto (em francês – Godard tenta que ela volte a ser a língua da subversão): quando a lei não é justa, a justiça passa a lei.
E, de fato, o manifesto é o lugar para o exercício da imaginação jurídica. A imaginação jurídica caracteriza-se por não poder descolar-se da ação. Um filme pode ser exemplo disso.

2 comentários:

  1. Obrigado pela menção ao meu texto, Pádua. Gostei dessa palavra - desnorteante - para descrever o filme. Você viu a versão com as legendas fragmentadas? É como Godard quer que o filme seja visto, intensificando a Babel das línguas. Eu assisti com legendas convencionais também, mas há algumas coisas que ficaram de fora mesmo assim. Um abraço!

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  2. As legendas que não têm conexão com o que está sendo dito na tela? A cópia que vi era assim. Abraços, Pádua.

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