Normalmente, a imprensa diária ignora a literatura; a maior parte dos jornais adota essa prática, assumindo que seus leitores são iletrados - afinal, se não o fossem, por que leriam tais jornais?
Lamentavelmente, esse iletramento veda o acesso ao direito à literatura, que é uma forma importante de participação na vida cultural de uma comunidade, e de entendimento do mundo e de si mesmo. Nesse sentido, periódicos como esses atuam contra a cidadania.
Outra forma de negar o direito é oferecê-lo com baixa ou nenhuma eficácia - Bourdieu falaria em eficácia simbólica. Alguns jornais maiores mantêm cadernos literários, mas raramente são bem cuidados e têm diminuído em tamanho. Imagino que, no futuro, as resenhas de cinco linhas serão a regra. Matérias de maior extensão não passarão de releases longos ou propaganda mais ou menos disfarçada de jornalismo.
Na ignorância completa do que é literatura, característica não incomum dos jornalistas que são jogados para atuar nos cadernos culturais (que são mais comuns do que os literários), as categorias usadas para tentar apreender os livros geralmente decorrem de algum raciocínio mercadológico.
Uma saída para pautas jornalísticas esvaziadas, por exemplo, é etiquetar certos autores como geração X, ou W, ou *, e fazer considerações genéricas que não se aplicam a nenhum, ou a quase nenhum deles. A indústria das antologias vive em parte desse fenômeno.
Outra solução para preencher vazios em jornal com vazios mentais é criar enquetes ou listas como "os dez mais", como se literatura fosse corrida de cavalo. Coisa descabida, pois os escritores raramente possuem a elegância ou a velocidade dos equinos.
Pode-se ainda fingir que se está falando de literatura, porém a ignorando completamente, ao discutir sobre prêmios literários - afirmando-se, por exemplo, que Patti Smith pode ganhá-los, mas Chico Buarque não, pois está etiquetado de outra forma na oferta de produtos culturais...
Prêmios? Quem é realmente premiado, senão aquela que os concede? Como se sabe, escritores de verdade só participam disso pelo dinheiro, mais nada. Não pelo prestígio: é o escritor que dá prestígio o prêmio, não o contrário. O oposto só ocorre se o escritor não presta. Ademais, a regra é que as premiações errem redondamente. Quantos ganhou Kafka? E Fernando Pessoa?
Sobre o raciocínio mercadológico: não gosto dos raciocínios etiqueteiros que colocam cada livro - o produto - em um nicho separado do mercado. Rejeito também os pasteurizadores, que negam as especificidades. Imagine, juntar crônica, reportagem, poesia, conto etc. numa só categoria? Como avaliar conjuntamente gêneros tão díspares? Por exemplo, o Prêmio Nascente, da USP (ainda existe?), acabou criando uma categoria "texto" englobando tudo isso, não sei se por algum raciocínio de uma deriva pós-moderna equivocada, ou se para economizar na premiação.
Imagine-se agora uma enquete de melhor livro do ano em que só se aparecessem como candidatos dez livros (acho que no Brasil é publicado só um pouco mais do que isso por dia), misturando romance, conto, poesia, história e memória (outros gêneros não publicaram nada de interessante, obviamente...), e que, como livro nacional, aparecesse uma edição brasileira de autor português (que, de tão prolífico, acabou criando para si mais uma nacionalidade)!
Uma enquete dessas é quase perfeita:
"Em Alguma Parte Alguma", de Ferreira Gullar (poesia)
"Os Anões", de Veronica Stigger (contos)
"Um Erro Emocional", de Cristovão Tezza (romance)
"1822", de Laurentino Gomes (história)
"A Máquina de Joseph Walser", de Gonçalo M. Tavares (romance)
"Eu Vos Abraço", Milhões, de Moacyr Scliar (romance)
"A Duração do Dia", de Adélia Prado (poesia)
"Do Fundo do Poço se Vê a Lua", de Joca Reiners Terron (romance)
"Esquimó", de Fabrício Corsaletti (poesia)
"De Menino a Homem", de Gilberto Freyre (memórias)
É quase a loucura. É quase a irrisão. É quase o terror. Porém, como não é nada disso, não chega a ser literatura.
P.S.: Felizmente, houve a alteração para melhor obra publicada em português; no entanto, isso acentuou um defeito: o conjunto fica ainda menos representativo com a hipertrofia da produção brasileira. Não há como consertar.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
Assinar:
Postar comentários (Atom)
que ótimo texto! sim, a lista dos dez mais é sempre uma dor no coração... interessa, decerto, apenas a livreiros e editores.
ResponderExcluiros dez melhores é piada, claro. o relatório fipe para 2008 tinha dado 44.503 obras de autores nacionais num total de 51.129 títulos (mas "obras gerais" e "CTP" cerca de 27.000) - é uma enormidade por dia!
Cara Denise Bottmann,
ResponderExcluirobrigado. Talvez esse tipo de enquete, porém, acabe tendo um efeito utilíssimo: servir como fonte para avaliar que escritores têm mais conexões nas redes virtuais da internet, já que é por esse meio que ocorre a votação...
Abraços,
Pádua
Adorei o texto, apenas acho que a situação é ainda pior. No jornal que costumava ler, o "caderno de literatura" ou de leitura hoje se resume a duas páginas. Sem contar o cheiro de jabá, com a presença "marcante" de livros de alguns selos amigos em detrimento da enorme diversidade.
ResponderExcluirPrezada Eliete,
ResponderExcluirobrigado; mas creio que não seja tão ruim que não possa piorar. O caderno pode ser transformado em página solitária que existirá apenas para anunciar a elegância democrática e letrada de autores como este: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/844786-detesto-escrever-pra-gente-pobre-diz-vera-fischer.shtml
Ou seja, ainda falta o caderno de uma página só virar uma extensão do "jornalismo" de celebridades. Talvez isso já ocorra. Podemos notar que esse tipo de cobertura é o que prevalece nas notícias sobre festivais e prêmios literários.
Abraços, Pádua.