O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Inaudição de hoje: Modern Sound e outros fechamentos no Rio de Janeiro


Termina no fim de 2010 a loja Modern Sound, que ficava no bairro de Copacabana, quase na esquina da Barata Ribeiro com a Santa Clara. Ela vendia música em vários suportes: discos, livros, partituras, filmes. Provavelmente para soar mais moderna, e porque vivia principalmente de vender produtos importados, tinha o título em inglês. Existia desde 1966, segundo leio na última sacola de compras que lá recebi, dia 28.
Ela tornou-se referência no Rio de Janeiro por conta de seu acervo. Ainda no dia das mães deste ano, embora a loja não fosse mais o que tinha sido, foi lá que encontrei a gravação de Lohengrin, de Wagner, regida por Daniel Barenboim. Em São Paulo, ninguém a tinha.
O primeiro disco (cd) que lá comprei foi um recital que Maria Callas gravou em 1958 com o maestro Nicola Rescigno, Cenas de Loucura. Provavelmente o melhor que a cantora gravou em estúdio, o disco é composto do final de Anna Bolena e Il Pirata, escritas por Donizetti e Bellini respectivamente (óperas que a EMI, desgraçadamente, não quis gravar integralmente com Callas), e da cena de loucura de Ofélia (em francês, Ophélie) na ópera Hamlet de Ambroise Thomas.
Era uma loja cara. Muitas vezes, o mesmo produto, se pudesse ser encontrado em outro lugar, nele sairia mais barato. No entanto, em certo momento depois do Plano Real, em FHC I, ocorreu algo inusitado e que não se repetiria: os preços foram diminuídos, tendo em vista a sobrevalorização do real (fenômeno que ocorre novamente).
Não sei o que levou ao fim da loja, que contava com um restaurante e um espaço para pequenos espetáculos com piano. Não sei que peso tiveram o declínio do Rio de Janeiro, a crise do mercado discográfico e o acesso a importados pela internet. Sei que outras lojas na cidade foram ocupando o espaço que a Modern Sound deixava.
Contudo, em nenhuma delas pode-se achar mais de uma dezena de gravações de um Lied de Schubert, que era o que ocorria ainda na década de 1990.
Em 2011, provavelmente não se ouvirá mais nenhum disco e nenhum espetáculo no espaço em que era a Modern Sound. Acho difícil que algo similar ocupe o espaço. O silêncio musical e os ruídos de outras mercadorias preencherão aquele canto de Copacabana.
Antes de a inaudição tornar-se realidade naquele espaço, ouvi agora um disco de música tritônica das comunidades originárias (os índios) argentinas, gravado com auxílio da UNESCO. Um tapa na cara dos conservadores que dizem que o sistema tonal é “natural”. Agora, começo a ouvir primeira sinfonia de Stefan Wolpe, compositor alemão e judeu que escapou do genocídio viajando para a Palestina em 1934. No entanto, lá não havia espaço para sua música, moderna demais para os ouvidos locais (o Estado de Israel manteria esse conservadorismo musical: Schönberg queixou-se da negligência com que eram tratadas as partituras que dedicou
ao novo Estado). Acabou fixando-se nos EUA, onde também não encontrou muitos ouvidos para sua música.

São alguns dos últimos discos que comprei na Modern Sound, que fecha mais um pequeno capítulo do declínio do Rio de Janeiro, visível tanto no setor privado quanto no público. Vejam o estado deste centro municipal de saúde em Botafogo, fechado pois era domingo, dia em que ninguém passa mal, com pombo a infectar o ar-condicionado. Ele não deveria estar lá.
O declínio também ocorre nessa outra categoria de interesse coletivo, que é a dos interesses difusos, como o meio-ambiente. Vejam abaixo outra ave em espaço inadequado - inadequado porque o espaço assim se tornou: encontrei uma pobre garça tentando achar algo comestível em meio à mistura de óleo, plástico e esgoto que é hoje a Baía de Guanabara. Não a vi ter sucesso na busca.

Não sei se os investimentos que alegadamente inundarão o Rio de Janeiro com os eventos esportivos globais terão ouvidos para o declínio. Garças não cantam. Tampouco pombos.

Um comentário:

  1. Testemunho pungente de Padua,

    entre o publico e o privado, o fantasista segue camuflando a decadência da vida urbana carioca.

    Eliana Perini

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