O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Brasil, Argentina e os desaparecimentos forçados: A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Anistia na América Latina

O Estado brasileiro, conforme se previa, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia"). A sentença, de 24 de novembro de 2010, pode ser lida aqui: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
Guilherme Gomes Lund é um dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975): http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhes.asp?CodMortosDesaparecidos=251. Sua mãe, Julia Gomes Lund, acabou nomeando esse caso dos desaparecidos na Guerrilha.
Os direitos humanos não devem ter fronteiras: se a dignidade é uma condição de todos seres humanos, não há sentido em ser contra à internacionalização desses direitos. No entanto, devido às peculiaridades culturais, é interessante que haja sistemas regionais de proteção a esses direitos (é o que defendo em meu livrinho), e não apenas os sistemas universais da ONU.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos pertence à OEA (Organização dos Estados Americanos) e não permite que indivíduos acessem diretamente a Corte: as queixas precisam ser apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que analisa a procedência do pedido e solicita informações ao Estado. Ela pode solicitar que o Estado adote providências para garantia e/ou reparação de direitos se chegar à conclusão de que há realmente violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica).
Neste caso, a Comissão considerou que o Estado brasileiro violou diversos artigos da Convenção e levou o caso à Corte Interamericana, sustentando que o Estado brasileiro era responsável internacionalmente:

a. pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento dos membros do Partido Comunista do Brasil e dos moradores da região listados como vítimas desaparecidas na presente demanda;
b. porque, em virtude da Lei Nº 6.683/79 (Lei de Anistia) promulgada pelo governo militar do Brasil, não se levou a cabo uma investigação penal com o objetivo de julgar e sancionar os responsáveis pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado das 70 vítimas desaparecidas, e pela execução extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva;
c. porque os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos, não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada o acesso à informação sobre os acontecimentos;
d. porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito de acesso à informação dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada; e
e. porque o desaparecimento das vítimas e a execução de Maria Lucia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação, afetaram prejudicialmente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada.


Na condenação, a Corte não deixou de ver a parcela de culpa do Judiciário brasileiro (já escrevi aqui a respeito) na violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.

5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.


Sustentei em seminários em São Paulo e na Espanha que o Supremo Tribunal Federal errou terrivelmente no julgamento sobre a lei de anistia de 1979. Deisy Ventura, em conferência que proferiu em Oxford, "A interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira o Direito Internacional", brilhantemente explicou as questões de direito internacional concernentes ao caso: http://educarparaomundo.files.wordpress.com/2010/11/ventura-oxford-07-11-2010.pdf
Recomendo também entrevista que o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, concedeu-me.
Enquanto as instâncias internacionais agem no caso brasileiro, a justiça argentina funciona. Nesse país, já foram declaradas a inconstitucionalidade das leis de anistia e a aplicação do direito internacional contra os crimes de lesa-humanidade, seguindo as decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Os ex-generais Jorge Rafael Videla (também ex-ditador) e Luciano Benjamín Menéndez foram condenados neste dia, 22 de dezembro de 2010, à prisão perpétua. A sentença, unânime, pode ser lida nesta ligação: http://contenidos2.tn.com.ar/2010/12/22/veredicto-videla-menendez.pdf
Deve-se notar que amanhã, dia 23, entra em vigência, também para o Brasil, a Convenção Internacional para a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado, o que pode fazer a Justiça brasileira retomar a questão da anistia da ditadura militar.
Na Argentina, apesar dos atrasos judiciais, tem havido uma série de condenações pelos crimes da ditadura militar. No entanto, lá como aqui, o desaparecimento forçado mantém sua atualidade. Na foto, que tirei em julho de 2010 no centro de Buenos Aires, exige-se a aparição de Jorge Julio López, que sofreu desaparição forçada duas vezes. A primeira, de 1976 a 1979, durante a ditadura militar, em um centro de detenção clandestino dirigido por Miguel Etchecolatz. Torturado, ele presenciou o sofrimento e a execução de outros prisioneiros.

O seu depoimento foi importante para a condenação de Etchecolatz, que foi julgado pelos crimes cometidos como Diretor de Investigações da Província de Buenos Aires. No entanto, logo após a condenação, Jorge Julio López desapareceu em 18 de setembro de 2006. Seu paradeiro ainda é ignorado.
Pode-se ler sobre o caso aqui: http://www.casapueblos-jorgejuliolopez.blogspot.com/.
Isso faz-nos relembrar, como no romance "2666" de Roberto Bolaño, em uma era de democracias formais, que o desaparecimento continua a ter uma paradoxal presença na América Latina.

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