O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 3 de junho de 2017

"Diplomacia e democracia", e o governo nem uma coisa, nem outra


O Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério das Relações Exteriores (Sinditamaraty) divulgou importante documento elaborado não por ele mesmo, e sim por servidores desse Ministério (na maioria, diplomatas), intitulado "Diplomacia e democracia": http://www.diplomaciaedemocracia.com.br/
Não lembro de precedentes para o documento, não só em razão da tradição autoritária dos órgãos de representação exterior, mas da singularidade da atual situação política. Os 158 servidores subscritos (neste momento), diante da instabilidade política nacional, afirmam que defendem "a retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira, fundamentais para a superação do impasse"; desejam o "restabelecimento do pacto democrático no país" e o "voto popular".
A BBC Brasil publicou dia 1o. de junho matéria de Ricardo Senra sobre essa declaração, ressaltando que "O número de signatários, que chegou a 180 no início da semana, caiu por medo de represálias dentro do ministério, segundo os entrevistados": http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40110901
Ignoro se o documento recebeu aquele título, bem escolhido, em razão de artigo homônimo publicado no ano passado, que se revelou mais um dos múltiplos desacertos do pensamento conservador e dos veículos que o propagandeiam no Brasil, assinado pelo professor Denis Rosenfield: http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2016/07/diplomacia-e-democracia.html
Ao professor parecia que as administrações do PT haviam alinhado o país às "posições socialistas/comunistas do século XX", segundo uma "doutrina bolivariana". O governo de Michel Temer teria rompido com isso, no entanto, pois "Busca o bem da nação, e não o contentamento ideológico de um partido."... O que significaria aquela "doutrina"? A "subversão da democracia por meios democráticos", com o resultado de que as instituições tornam-se "progressivamente desmontadas, destruídas".
Essas linhas, embora constrangedoras em termos de análise política e nulas no campo do pensamento, não deixam de revelar um extraordinário talento de atribuir ao adversário o que seus amigos estão fazendo. O governo Temer tem atacado a democracia e desmontado as instituições, gerando, entre outros resultados nefastos, desprestígio do país.
O governo de Maduro tem reprimido violentamente os protestos na Venezuela. Por sinal, Temer está entre os mais impopulares chefes de governo no mundo, mas continua, segundo a Time, perdendo para Maduro nesse requisito (um eterno vice?), apesar do esforço dos jornais e professores aliados: https://t.co/snGcrNF0Qz. Diante da repressão no Brasil a protestos análogos, especialmente o de 24 de maio em Brasília, quando o governo Temer tentou falsamente atribuir ao deputado federal Rodrigo Maia o pedido do uso das Forças Armadas contra manifestantes, foi lançado o seguinte comunicado de imprensa da ONU no dia 26: "A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) condenam o uso excessivo da força por parte da Polícia Militar para reprimir protestos e manifestações no Brasil": https://t.co/GVeYoBKf2b.
A resposta do Ministério das Relações Exteriores brasileiro foi publicada naquele mesmo dia, empregando termos excepcionais na linguagem diplomática, entre eles: "beira a má-fé", "fins políticos inconfessáveis", "cinicamente e fora de contexto", e a surpreendente alegação de que "O governo brasileiro atua amparado na Constituição Federal e de acordo com os princípios internacionais de proteção aos direitos humanos": http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/16345-nota-a-imprensa-cidh
O desacerto diplomático foi tremendo. A matéria sobre o assunto publicada por The New York Times destacou que o pronunciamento do governo contra a ONU gerou o estopim da manifestação "Diplomacia e democracia"; https://t.co/2tShhjuaHGl.
O governo é reincidente no assunto. Entre outros exemplos recentes do desastre do governo de Temer e de sua hostilidade aos direitos humanos no campo da política exterior, está recentíssima manifestação de racismo institucional e desrespeito ao Sistema Interamericano, em maio deste ano: "Governo Temer desrespeita indígenas em audiência internacional de direitos humanos": "A audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizada, na quarta-feira (24), em Buenos Aires, na Argentina, para tratar das violações de direitos sofridas pelos povos indígenas do Brasil foi marcada pela falta de respeito dos representantes do governo do presidente Michel Temer. Eles se limitaram na leitura de documentos burocráticos e “responder” aos indígenas presentes na audiência em espanhol." (http://amazoniareal.com.br/governo-temer-desrespeita-indigenas-em-audiencia-publica-internacional-de-direitos-humanos/).
Também há poucos dias, a tropa de choque do governo tentou evitar, com notável falta de urbanidade com evidente destempero, a discussão no Parlamento do Mersocul sobre a crise política no Brasil, (vejam este pequeno vídeo divulgado pelo deputado federal Jean Wyllys, que integra a oposição: https://twitter.com/jeanwyllys_real/status/869396004201779200). Apesar da violência dessa tropa parlamentar governista, o Parlasur aprovou em 29 de maio declaração expressando "preocupação pela situação institucional no Brasil": https://t.co/RMGMaeR5y4. No artigo 2o., declara-se "Rechaçar a militarização e a repressão violenta às manifestações pacíficas dos movimentos sociais e apoiar os pronunciamentos da CIDH e do Escritório Geral para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos."
Em 31 de maio, foi a vez de o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa e mais 53 organizações (entre elas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e a Associação Brasileira de Antropologia) criticarem o governo Temer pelo ataque à ONU: https://t.co/yHqo1M0HHx.
O número expressivo de apoio às eleições diretas (85%, segundo o Datafolha) mostra que o desprestígio interno se aprofunda. As forças antipopulares, evidentemente, não querem essa solução democrática, entre elas, organizações de comunicação que se opuseram à campanha das diretas de 1984 e se mostram opostas à de hoje: https://twitter.com/bslvra/status/869263750372708352.
O absurdo da resposta internacional que o Ministério das Relações Exteriores de Temer, hoje chefiado pelo senador Aloysio Nunes do PSDB-SP, não só no tom como no conteúdo, flagra-se nestes recentíssimos exemplos de "funcionamento normal das instituições":

  • Alteração secreta de dados oficiais: "o servidor do Planalto foi acessado e as agendas antigas manipuladas naquela mesma manhã em que a PF cumpria mandados de prisão e buscas autorizados pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). Entre os dias nos quais constam alterações no sistema está a exata data desse encontro revelado pelo lobista da JBS." e "As apurações da Lava Jato indicam que a maioria desses encontros de Temer com os executivos da JBS nem tinha registro oficial. O último deles, por exemplo, ocorreu totalmente às escondidas, em 7 de março de 2017, às 22h30, e foi nele que Joesley gravou a conversa na qual relatou sutilmente que estava fazendo pagamentos ao ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), mantendo com ele uma “boa relação”. Após a polêmica, Temer passou a registrar em detalhes sua agenda.", em https://t.co/tcbwtXOfrR.
  • Confissão pelo presidente da república (não podemos esquecer que se trata de um constitucionalista, professor de direito da PUC-SP) de prevaricação, no episódio do encontro clandestino com Joesley Baptista, da JBS: "É Temer quem endossa o diálogo gravado: ''Ele falou que tinha [comprado] dois juízes e um procurador''...." https://t.co/PThMrVdHHh; Temer, ademais, revelou informações privilegiadas para o empresário investigado: https://twitter.com/lauraabcarvalho/status/865556076443222017
  • Aparente desvio de finalidade na formação do Ministério, para conferir foro privilegiado a investigados: https://twitter.com/alessandromolon/status/870791093377433604; ou, talvez, com o fim de defender o próprio chefe de governo: https://twitter.com/FabioSeghese/status/869155543969124352 (sobre o atual Ministro da Justiça, "Entidades de classe como a Associação de Delegados da Polícia Federal enxergam com preocupação a mudança na pasta, com receio de que o novo ministro possa interferir para minar a Operação Lava Jato." em https://t.co/vbYCKS9SAj).
  • Escolha pelos próprios investigados ou réus, como o senador do PSDB-MG Aécio Neves, dos que vão julgá-lo: https://t.co/GSIpxyd1mT, ou, como no caso de Temer, julgamento a ser feito por amigos: https://t.co/utonjgEWFn; e, mesmo assim, continua ocorrendo mais prisões de (ex-)integrantes do governo (https://t.co/yltk3nSVDH).
  • A referência a homicídio tornar-se mera brincadeira na boca das autoridades da República ("tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação"); certamente um problema de falta de decoro na linguagem.
  • Curiosas inexatidões de numerário no ofício de carregamento de malas por ex-assessor especial do presidente da república (http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-05/defesa-de-loures-entrega-policia-federal-mala-com-r-465-mil).
  • Abertura de inquérito, pelo Procurador-Geral da República (em setembro, se Temer estiver ocupando o mesmo cargo de hoje, ele escolherá o próximo Procurador-Geral), contra Temer por corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de justiça.
  • Apresentação de diversos pedidos de impeachment contra Temer; se a oposição o fez, como a Rede do deputado federal Alessandro Molon, deve-se notar que também elaborou o seu o Conselho Federal da OAB, insuspeito de saudades do governo do PT, pois apresentou pedido análogo contra a então presidenta Dilma Rousseff: https://t.co/SPOv65vDHV).
Etc. O jornalista Bolívar Torres escreveu que o grande legado do governo de Temer se dará no plano linguístico. Já seria bastante negativo se o constitucionalista se limitasse à tal influência; no entanto, parece que a permanência deste presidente no poder, além de evitar ser preso, tem como fim principal realizar as "reformas", isto é, desconstituir direitos constitucionais.
Laura Carvalho tratou do tema em sua coluna de 25 de maio, sob o enigmático título "Rouba, mas reforma": https://pbs.twimg.com/media/DAqaVAzXcAAjpyu.jpg.
Como estas reformas representam um saque contra o povo brasileiro, entendo que alguns ainda achem que o atual governo seja o mais apropriado para realizá-las.

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