O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Annita Costa Malufe e a crítica poética da teoria do valor

Já escrevi um pouco sobre Annita Costa Malufe neste blogue e em um artigo que publiquei no número 10 da Cão Celeste, de 2017, revista da editora Averno. Ele foi escrito antes da publicação de Um caderno para coisas práticas (Rio de Janeiro: 7Letras, 2016), seu último livro. A obra apresenta assuntos familiares, e uma de suas vozes mais frequentes é a de uma senhora que está perdendo a memória e a autonomia. Outras vozes são os dos que a rodeiam e assistem, especialmente outra mulher, provavelmente a filha, que acaba sendo tratada como desconhecida: “cada vez que/ eu ia lá ela me/ agradecia como/ se eu fosse uma/ desconhecida/ alguém que/ viesse de muito/ longe para uma/ visita de caridade”.
O “caderno de coisas práticas” é um auxílio para alguém cuja consciência vacila: “a memória rasa o esquecimento/ raso lamentar rapidamente/ abrir a janela vezes seguidas/ acompanhar o voo rasante do/ pássaro sem saber o nome/ exato não se lembrar a data/ nem o endereço não saber/ tampouco o dia da volta”; alguém que está a perder as palavras: “não se aproxime/ ela teria ímpetos de dizer mas depois/ a palavra voltava e ficava morta/ mais ou menos na altura do peito”.
O livro assume a forma de um caderno de anotações a várias mãos (pois temos a voz da mulher doente e dos que a acompanham) que registra a dissolução de um eu. Os diversos detalhes biográficos, as internações, os acidentes são contados pela própria mulher doente (“os dias iguais a camada de nicotina eu/ me recuso a entrar a não ser/ acompanhada desta vez”) e por quem assiste à progressiva desorientação:

supercílio aberto só porque
não viu o poste ela já não
devia estar bem foi como
ver alguém indo embora aos
poucos o corpo ir ficando vazio

O estreitamento do horizonte ocorre ao lado da dissolução do corpo: “ela ia lentamente perdendo/ os contornos mais visíveis/ perdia o contorno dos ombros/ dos braços a firmeza dos braços [...] o peito a linha das costelas as/ costas lentamente escorriam/ aderiam à barriga à parte interna/ da coxa se colavam ao chão/ desciam pela cama aderiam/ ao chão sem resistência alguma”. A aderência ao chão decorre da perda do espaço, que passa a se resumir àquilo que o tato pode distinguir na cama:

minha vida toda se resume
a isto um
espaço exíguo
três metros por
dois ou um
pouco menos [...]
talvez tudo se resuma
ao tato
do lençol nas costas

O livro combina inventivamente e sem aviso os discursos direto, indireto e indireto livre. Neste trecho, temos um exemplo do cruzamento das vozes da senhora doente, dos que a acompanham, e um narrador em terceira pessoa: 

se apresse estou ido você
não vê não vejo nada à minha
frente não falo estou envolto
numa nebulosa fria os pés presos
enredados corro mas de que
adianta ela comparou o rosto
não se mexia impassível se
apresse vamos tenho um
rosto de plástico

A mãe, a paciente, vai perdendo a expressão: o "rosto de plástico". Dessensibilizando-se, ela vai-se transformando em uma das coisas. No comovente final, as coisas deixadas, com décadas de idade, vão sendo revistas sob a marca da obsolescência, pois remetem à biografia dos mortos: “cartas de 1918/ para o vovô Heitor como você vai/ jogar fora”, “quem usaria esta saia/ além de uma mulher/ da década de oitenta com/ uns quarenta anos”. As coisas são vendidas (“folhas de bananeira que eram/ do Flávio acho que não podemos/ salvar mais nada as coisas/ se vão também já duraram demais”). Elas “já duraram demais’, pois sobreviveram aos donos. Com isso, porém, elas recuperam o espaço. Em achado brilhante, na última anotação/poema, as coisas voltam à cidade: “o canto da sacada mercado de/ pulgas tardes inteiras na feirinha/ da praça reconhecendo objetos dos/ avós [...]”. Após a dissolução do sujeito, voltam ao mercado. Algumas delas provavelmente nunca serão vendidas, não servem para mais nada:

as gravuras as litografias tudo já
durou demais são
resquícios quem mais
usaria isso

Sem valor de uso, sem valor de troca. Temos aí uma das ironias do título, que se refere às coisas práticas. Se a senhora com a memória declinante precisa anotar o que precisava fazer, a noção do prático, no fim, diz respeito ao que fazer com as coisas inúteis deixadas pelos mortos. Elas não têm mais utilidade prática, mas são perfeitas, porém, para esta poesia, que poderia servir para pensar uma crítica poética da teoria do valor.

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