Ainda no interessante volume V, pode-se ler algo curioso: o ataque pouco elegante de Julio Katinsky à luta armada e, aparentemente, mal informado: esse professor achava que Janice Theodoro, que foi impedida politicamente de entrar na FAU e fez carreira na FFLCH, havia sido guerrilheira (p. 119). A presidenta da CVUSP, evidentemente, nega: ela não integrou a luta armada.
O volume IV, que tem por objeto a Faculdade de Medicina, não deu conta da pesquisa. A CVUSP é bastante franca a respeito:
Este volume ainda aborda, tangencialmente, a situação vivenciada no período pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e pelo Hospital das Clínicas. Infelizmente o acesso aos documentos destas instituições, apesar da Lei de Acesso a Informação, de 2011, foram negados. Estas barreiras dificultaram a investigação de sérias suspeitas levantadas principalmente pela Comissão Estadual Rubens Paiva, presidida por Adriano Diogo (ver entrevista no Volume Depoimentos).A Comissão não conseguiu achar documentos a respeito da participação da Medicina na repressão política. O volume também não conseguiu dar conta da atividade política dos estudantes. No Arquivo Público do Estado de São Paulo há muito material sobre eles, no entanto.
Por outro lado, é de elevada importância alguns episódios narrados pela Dra. Albertina Duarte, em seu depoimento: atendimentos a presos políticos prestados clandestinamente; a tortura em presos políticos dentro do Hospital das Clínicas; o desaparecimento de fichas de pacientes, suspeitos de exercerem atividades políticas, atendidos pela Dra. Albertina Duarte e outros médicos ou estagiários comprometidos com uma rede de socorros clandestinos.
A pesquisa não se estendeu o quanto deveria ao importante papel que os estudantes da FMUSP exerceram no período de intensas mobilizações ocorridas na década de 1970, cujo ápice se deu em 1977, e que desembocaram na reorganização das entidades representativa dos estudantes e dos docentes e no período de transição democrático. (p. 15-16)
O mais interessante, creio, são os depoimentos. Elza Berquó fala do projeto do Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (CEDIP), ferido pelo AI-5; ela foi um dos pesquisadores afastados pela ditadura, e acabou integrando o CEBRAP:
No Cebrap, com o espírito ainda vagando pelo Departamento, pudemos dar prosseguimento, com os colegas do CEDIP, aos trabalhos em curso. A Pesquisa de Reprodução Humana no Distrito de São Paulo, iniciada em 1965, produziu inúmeros trabalhos, reunidos no livro “A Fecundidade em São Paulo: Características demográficas, biológicas e socioeconômicas”, que veio a lume em 1977, publicado pela Editora Brasileira de Ciências-Cebrap.Podem-se ver também declarações como a de Erney Plessman de Camargo, que simplificam o papel da instituição: "O golpe de 64 não foi apenas contra o Estado de Direito, ele se constituiu de subgolpes contra muitas instituições. Uma destas foi a USP que, no entanto, nunca sucumbiu ao golpe, mas a ele se opôs durante toda sua duração. Dizer que a USP foi conivente com o golpe é um ato de desrespeito a todos os mártires, alunos e docentes, que sucumbiram às atrocidades da ditadura." (p. 212). O relatório da CVUSP mostra uma situação diferente.
Mesmo com a Anistia, não pude retornar à Faculdade de Saúde Pública, uma vez que minha volta foi rejeitada por 50% de sua Congregação.
Até hoje a USP não tem nenhum centro de estudos populacionais. (p. 202)
Note-se também a condescendência da Comissão da USP, que não sugeriu, entre as recomendações, a tomada de providências administrativas contra os órgãos que se negaram a prestar informações, e também o trabalho incompleto envolvendo as fichas dos casos individuais. Feiga Langfeldt, por exemplo, tem ficha no DEOPS/SP, mas a Comissão só consultou o Livro Negro da USP nesse caso (p. 268).
O volume III dedica-se aos 47 mortos e desaparecidos políticos que tinham relação com a USP segundo esta lista:
No decorrer do volume, a grafia do nome de Arno Preis é corrigida, mas não a de Olavo Hanssen, sempre escrito erradamente, apesar de a Comissão ter consultado o perfil elaborado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (a CVUSP, na citação, porém, escreve "Olavo Hassen"), que o escreveu de forma correta:
A CVUSP aparentemente também não consultou a biografia publicada por Murilo Leal em 2013 (o que é estranho, pois se trata da única, por enquanto, já escrita sobre Hanssen). Poderia ter também visto o curta que a Comissão "Rubens Paiva" fez também em 2013: https://www.youtube.com/watch?v=vGUN9sNZUnA
Destaco a questão porque acho indelicado com a memória uma Comissão da Verdade registrar erradamente o nome de um morto político, e porque eu perguntei à representante dessa Comissão, no balanço das Comissões da Verdade realizado no IRI/USP em 2015, se a CVUSP recomendaria a retificação do nome no "Memorial aos Membros da Comunidade USP Vítimas do Regime da Ditadura Militar – 1964/1985".
Não só não o fez como insistiu no erro, que se repete em outros momentos: vol. III, p. 34, vol. VI, p. 32; vol. IX, p. 12; no volume IX, porém, a grafia está correta na página 102; estranhamente, a nota da página 103 não menciona que ele estudou na USP, terão pensado que se tratasse de outra pessoa?
O volume trata da tradição anticomunista dos órgãos de segurança, bem anterior à ditadura de 1964, e traz a reprodução de um documento do DOPS-SP de 1949 dando notícia de "Manifestação comunista levada a efeito na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo" (p. 261).
O foco desta parte do relatório são os perfis de mortos e desaparecidos políticos. No entanto, é estranho que a ficha de Iara Iavelberg registre "Morto (suicídio)" (p. 146), se a falsa versão oficial da morte dela já foi desmentida (ela foi executada em Salvador), como o próprio volume conta.
Jeová Assis Gomes, aluno da Física, "em 1966, liderou a 'Greve das Panelas', que se realizou no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP)" (p. 158) e foi expulso da Universidade no ano seguinte. Integrou a ALN (Ação Libertadora Nacional) em 1969, foi preso e torturado pela OBAN e foi um dos presos trocados pelo Embaixador alemão, mas voltou ao país e foi morto em Goiás. O perfil no volume devidamente registra que
O caso de Jeová foi julgado na CEMDP [Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos], em 10 de dezembro de 1996, e foi aprovado por maioria, e quem votou contra o deferimento foram o general Oswaldo Pereira Gomes, além de Paulo Gustavo Gonet Branco e João Grandino Rodas, à época Prof. titular da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e, de 2010 a 2014, reitor da Universidade de São Paulo. (p. 160)A CVUSP foi criada durante o mandato de Rodas apenas depois de grande mobilização da comunidade acadêmica.
O volume II "trata de casos em que alunos da Universidade de São Paulo (USP), após cumprirem penas de prisão como incursos na Lei de Segurança Nacional, ou obterem liberdade condicional, solicitaram suas rematrículas nos cursos que estavam realizando antes do impedimento." (p. 10). Relatam-se quatorze casos. O estreito recorte deixa de lado várias outras situações, especialmente quando a USP expulsou o aluno por procedimentos próprios, sem que ele tivesse cumprido pena de prisão, como aconteceu com Jeová Assis Gomes. Ainda é necessário realizar uma pesquisa de cunho mais amplo sobre a repressão aos estudantes realizada pela Universidade; para isso, como escrevi na nota anterior, é necessário pesquisar a correspondência dos diretores das unidades com o DOPS-SP e outros órgãos da repressão.
O volume I, além dos documentos da AESI, a principal descoberta da da CVUSP, que comprovem as formas de controle ideológico na Universidade, recolhe informações já sabidas, como a presença de Krikor Tcherkezian, assistenten técnico de Gabinete da Reitoria, no DEOPS/SP: "De acordo com o Perfil da CNV, as atividades de informações teriam surgido na USP em 1970, por iniciativa do Reitor Prof. Miguel Reale e a contratação de Krikor estaria relacionada a essa atividade. Essa contratação teria sido influenciada por seu irmão, Arminak Tcherkesian, que era homem de confiança do Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Krikor teria sido designado como responsável pela AESI." (vol. I, p. 175).
O relatório ressalta a vontade política de Miguel Reale em estabelecer a Assessoria na USP, pois ela não era obrigatória, bem como as qualidades do escolhido, que era investigado por tráfico de drogas:
Analisando os documentos produzidos em 1977 pelo SNI, pode-se comprovar e compreender que, no caso das universidades estaduais, o reitor possuía livre-arbítrio para a criação ou não de uma assessoria, porém, se o fizesse, não encontraria respaldo para tal decisão no organograma do Serviço de Segurança e Informação em âmbito federal. Essa questão, a princípio sem relevância prática, expressaria, posteriormente, conflitos entre setores do serviço de segurança, cujos atores, que mais tarde entrariam em conflito – de um lado, o SNI; e, de outro, a AESI/USP, que passaram a divergir após a troca do comando do II Exército durante a presidência de Ernesto Geisel, que objetivava a abertura política.Tanto Arminak Cherkesian quanto Krikor Tcherkesian acabaram sendo considerados inidôneos pelo SNI. O General João Franco Pontes, que ocupou no cargo por indicação do II Exército, nele ficou até sua extinção em 1982.
De todo modo, a documentação coletada foi capaz de comprovar, com a contratação do funcionário Krikor, o interesse do reitor Miguel Reale em se utilizar dos serviços de informação e de polícia para impedir, na USP, a presença de qualquer manifestação contrária à linha-dura, restringindo consideravelmente o movimento estudantil, a livre circulação de ideias e a autonomia universitária.
Para a realização desse projeto, o reitor escolheu um funcionário que vinha sendo investigado pela Delegacia da Polícia Federal do Paraná desde 1972 pela prática de tráfico de drogas, tendo sido, posteriormente, considerado inidôneo pelo SNI em 1976. (p. 61)
Lamentamos, no volume, a desatualização no uso do quadro "Violência letal praticada por forças estatais e outros índices da repressão política no Brasil, no Chile e na Argentina." (v. I, p. 23; o volume sobre a Faculdade de Direito também o faz: v. VI, p. 9-10). A fonte é o livro Political (In)Justice, de Anthony W. Pereira, que é muito bom, evidentemente, mas é de 2005 e, por essa razão, não traz os dados da CNV, que deixou o gráfico bastante defasado com a pesquisa sobre povos indígenas e camponeses .
Ele inclui também as recomendações, que causam perplexidade. Como eu perguntei no balanço das Comissões da Verdade realizado no IRI/USP em 2015 (naquela época, como sugestão), por que não recomendaram o fim das homenagens aos membros da USP que participaram da repressão política? Por exemplo, a mudança do nome da rua reitor Prof. Orlando Marques de Paiva, que prestou informações falsas à CPI da Alesp em 1977 (o livro da Adusp, Controle Ideológico na USP, deixou a questão bem clara em 1978), negando que houvesse controle ideológico nas contratações para a USP?
Por que não romper com o passado autoritário nessas medidas de memória?
Outro problema é o ocultamento da história da criação da Comissão. Ela surgiu somente depois de uma ampla mobilização na USP em 2012 por uma Comissão da Verdade universitária para, entre outros fins, auxiliar o trabalho da CNV. Vejam abaixo a moção da Congregação da FFLCH:
A Comissão foi criada em 2013 pelo reitor João Grandino Rodas sem ouvir a comunidade acadêmica e realizou seus trabalhos em segredo. A Adusp, já em 2014, denunciava a situação:
A Comissão da Verdade (CVUSP) foi criada em 7/5/13, por meio da Portaria GR 6.172, e instalada em 25/7/13, mas desde então pouco se sabe de suas atividades. Recorde-se que sua configuração resultou de arbitrariedade do reitor J.G. Rodas, que rompeu com o Fórum pela Democratização da USP, com o qual vinha negociando a composição da CVUSP, e nomeou unilateralmente seus membros: Dalmo de Abreu Dallari, da Faculdade de Direito (FD), designado presidente; Erney Plessmann de Camargo (ICB); Eunice Ribeiro Durham e Janice Theodoro da Silva (ambas da FFLCH); Maria Hermínia Tavares de Almeida (IRI); Silvio de Azevedo Salinas (IF); e Walter Colli (IQ).De fato, ela manteve suas ações em segredo, o que não é exatamente uma forma transparente de agir, ou de engajar democraticamente a comunidade em seus trabalhos. Não sabemos, por exemplo, por que uma Comissão que acabou oficialmente em julho de 2016 entregou seu relatório somente no fim de março de 2018. Ignoramos as dificuldades e pressões por que passaram estes trabalhos; aparentemente, houve unidades que não entregaram dados à Comissão, mas ela não revela exatamente quais, e por que razão (vol. X, p. 19).
Segundo a Portaria, a Comissão teria um ano a partir de sua instalação para trabalhar e apresentar um relatório. Passados oito meses, ainda são poucas as informações obtidas e tem sido difícil consegui-las. Dallari viajou e deve retornar apenas em abril. Sua substituta na presidência, a professora Janice, passa metade da semana incomunicável devido a uma pesquisa que realiza em áreas montanhosas, segundo a secretária da CVUSP. Os outros membros, quando localizados, não expõem as atividades da Comissão.
O caso de Ana Rosa Kucinski, um dos exemplos claros de colaboração da USP com a ditadura militar, é tratado igualmente de forma a apagar a história, fazendo esquecer que a Faculdade de Química recusou-se a atender os pleitos de Bernardo Kucinski, irmão da professora desaparecida (que já havia publicado o romance K., inspirado no desaparecimento dela e do marido, Wilson Silva), e que a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva" decidiu fazer uma audiência pública sobre o caso em 2013, mas as autoridades universitárias se recusaram a participar!
A Comissão estadual acabou por realizar a audiência em outubro de 2013 no espaço dos estudantes de Química; o diretor da faculdade não participou (esteve no espaço até pouco antes de ela iniciar-se e foi embora), e a CVUSP manteve-se alheia. No ano seguinte, decidiu agir. Essa história não é contada no relatório.
Na falta de transparência de suas atividades, no apagamento da mobilização social até mesmo para a sua criação, o interessantíssimo relatório da CVUSP (documento de leitura obrigatória não apenas sobre a USP, mas sobre a ditadura militar) acaba por revelar, até mesmo performaticamente, como as continuidades da ditadura fazem-se presentes na sociedade brasileira.
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