O governo federal conseguiu fechar a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (ELBC), uma das principais do país, por meio da estratégia tipicamente liberal de gestão: retirar o financiamento para que a instituição pública entre em colapso e, dessa forma, feche as portas ou, caso haja interesse do mercado, seja "concedida" a preço vil a empresários.
Parece que essa estratégia tem sido mais eficiente do que as iniciativas de mordaça do que se chama falsamente de "escola sem partido" (ou seja, com o "partido" neoliberal-teocrático-militarista) para calar professores e pesquisadores.
A revista enviou correio eletrônico comunicando o encerramento. A editora-chefe, professora Regina Dalcastagnè, publicou-o em suas redes sociais. A acelerada destruição do CNPq e da CAPES por Bolsonaro foi um dos fatores que levou ao resultado:
Com o desaparecimento dos editais de apoio a publicações no Brasil e sem suporte institucional (ainda que a Estudos tenha sido um dos únicos três periódicos da UnB a receber nota máxima na última rodada de avaliação da Capes), não há como dar continuidade ao trabalho.
Cito mais estes dois parágrafos:
A inviabilização de uma revista como a Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, que comunga dos ideais da ciência aberta, não é uma situação isolada. Em nome da “sustentabilidade”, há uma pressão imensa para que os periódicos acadêmicos cobrem dos autores a publicação de seus artigos. Caso contrário, na ausência de outras formas de apoio, teriam que repassar os custos aos leitores. Existem revistas estrangeiras cobrando o equivalente a R$ 15.000,00 ou até mais para um brasileiro publicar seu texto; revistas nacionais que já se submeteram à ideia cobram valores também na casa dos milhares de reais. Uma vez que a publicação em periódicos acadêmicos, além de garantir a circulação do conhecimento, é importante para a formação do currículo do pesquisador e para a qualificação dos programas de pós-graduação, cabe perguntar: quem pagará por isso?
Certamente não serão os pesquisadores sem dinheiro ou as instituições mais periféricas. Recursos de universidades públicas, que poderiam ser utilizados para financiar as revistas brasileiras, já estão sendo empregados para pagar editoras acadêmicas comerciais que, na outra ponta, cobram valores exorbitantes para que as bibliotecas universitárias possam disponibilizá-las a seus professores e alunos (comprometendo o orçamento das bibliotecas e, portanto, a atualização dos acervos de livros). Trata-se de um negócio muito lucrativo. Não por acaso, nos últimos anos a Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea recebeu – e rechaçou, evidentemente – várias propostas de venda de sua “marca” para editoras predatórias.
Trata-se de um adversário perigoso e sem escrúpulos. A indústria da publicação científica, com as armas letais da legislação de direitos autorais, levou à prisão e à morte um ativista como Aaron Swartz. Trata-se da batalha pelo controle da circulação de ideias e informações, na qual costumam se unir corporações e Estados. Lembro aqui do artigo de artigo do jurista Rafael Zanatta sobre a ideia swartziana de que "a ação colaborativa pode modificar as instituições existentes em uma perspectiva pós-capitalista". A fundadora do Sci-Hub, Alexandra Elbakyan, é basicamente uma asilada política pela indústria editorial, com o FBI em seu encalço.
É óbvio que o governo federal trabalha com outra perspectiva, não a de Swartz ou a de Elbakyan... Pois o sistema de editoração gratuita, bombardeado por Bolsonaro, atende a esse espírito de ação colaborativa, importante tanto para o conhecimento quanto para a democracia.
No twitter, comentei que é claro que OUTRAS revistas serão destruídas pelo governo federal e pelas demais autoridades bolsonaristas em diversas esferas do poder. A política de devastar as instituições científicas no Brasil inclui inviabilizar a divulgação de sua produção e atende ao projeto de privatização da educação pública.
Talvez seja útil relembrar que são as instituições públicas que respondem pela maior parte da pesquisa no Brasil. Acabar com elas não melhorará a ciência no Brasil, muito pelo contrário. Ou alguém está contando com a pesquisa de vacinas contra covid-17 (errei o número?) produzida por alguma uniesquina?
Sobre o projeto bolsonarista de destruição da ciência brasileira, quero lembrar, já no primeiro ano deste governo, da nota de esclarecimento da Associação Brasileira de Editores Científicos sobre a Chamada CNPq Nº 19/2019 – Programa Editorial, que deveria ter servido para apoio das publicações:
O recurso destinado à esta chamada manteve-se o mesmo por anos e caiu drasticamente passando de R$ 4.000.000 em 2018 para apenas R$ 1.000.000 em 2019, ou seja, redução de 75%. Cabe salientar o fato de que parte do recurso era dotado pela CAPES para esta chamada, o que não ocorreu, e portanto, o CNPq manteve de forma unilateral o Edital.
[...]
Foram apresentadas 222 propostas ao edital, distribuídas pelas Grandes Áreas do Conhecimento, as quais demandaram recursos no valor de R$ R$ 12.777.453,43. Portanto, os recursos disponibilizados pelo presente edital foram de R$ 1.000.000,00, equivalentes a 7,8% da demanda de recursos.
Após o trabalho de julgamento, o Comitê recomendou a aprovação de 162 propostas, no entanto, diante da apresentação do relatório final, a presidência do CNPq decidiu por não pulverizar o recurso e manter a série histórica de apoio a periódicos (quanto ao montante médio recebido por periódico nos últimos anos).
Desta maneira, inúmeros periódicos ficaram sem apoio, já que não alcançaram a linha de corte adotada pela Presidência do CNPq, que entendeu a necessidade de se manter o apoio a determinados periódicos apontados como estratégicos.
A redução de 75%, claro, era apenas a preparação abrupta para a extinção, como aconteceu também com as bolsas de pós-graduação dos programas.
A ELBC tinha conceito A1, o mais alto. A qualidade das instituições públicas, porém, tem servido não para a sua preservação, mas para atiçar a sanha de devastação dos privatistas. Eu era leitor da revista, claro. Em maio de 2019, enviei um artigo para a revista no qual me referi ao "difícil andamento do próprio processo de justiça de transição no Brasil (e que permitiu em 2018 a eleição de um governo que nega o caráter criminoso da ditadura militar e elogia torturadores)."
Como todos os artigos que publiquei desde então (apesar de poucos), critiquei o atual governo (um dever de todo pesquisador, creio). Ele foi publicado no número 58 da revista. Eu não imaginava, porém, que o governo Bolsonaro a destruiria tão rápido.
Para essa destruição, é certo que houve a colaboração de colegas dos campos da ciência, da cultura e da pesquisa que traíram suas próprias áreas e apoiaram a eleição disso em 2018, apesar do discurso eleitoral já francamente obscurantista (bem como plano de governo, frontalmente hostil àqueles campos: Bolsonaro está cumprindo suas promessas).
Continuam existindo esses apoios, embora, em regra, venham de figuras de estatura equivalente à do atual ministro da educação (ou à do impreCionante titular anterior) e à do secretário nacional de cultura. A essa estatura o Brasil vem sendo reduzido, pois é a única compatível com a ideologia neoliberal-teocrática-militarista.
Vi gente tratar como farsa o recentíssimo projeto de destruição da UERJ elaborado por um deputado estadual bolsonarista (parece que não seguirá adiante, informou Carlos Minc), porém na farsa também se revela o espírito da época. Trata-se da ideologia que vem presidindo eventos aparentemente díspares como o fechamento programado das universidades públicas ("Hoje, as 69 instituições têm a mesma verba que as 51 existentes em 2004. Só que 17 anos atrás elas tinham 574 mil alunos, hoje são 1,3 milhão de estudantes."), o genocídio dos povos indígenas ("“Estamos diante de uma política de extermínio indígena no Brasil”, denuncia assessor jurídico da Apib na ONU"), a premiação do crime ambiental com o desmonte da fiscalização e da legislação ("Delegado detalha denúncias de crime ambiental contra Ricardo Salles; deputados governistas criticam investigação") e à resposta genocida à pandemia.
Enquanto este governo continuar, a devastação prosseguirá. Já é tarde para desfazer vários de seus efeitos, como a morte de quase meio milhão de pessoas.
Assinaram a dolorosa nota de extinção da ELBC os responsáveis pela revista; cito seus nomes não só para ressaltar sua excelência, mas para que as pessoas que não conhecem os periódicos científicos percebam, tendo em vista a diversidade das seções e das afiliações institucionais, como é difícil editá-los e como o espírito colaborativo, a que aludi antes (contrário, claro, à ideologia deste governo), é fundamental:
Regina Dalcastagnè, Universidade de Brasília (editora-chefe)
Patrícia Trindade Nakagome, Universidade de Brasília (editora científica)
Laeticia Jensen Eble, Universidade de Brasília (editora-executiva)
Leocádia Aparecida Chaves (secretária executiva)
Paula Dutra, Instituto Federal de Brasília (editora da seção temática)
Paulo César Thomaz, Universidade de Brasília (editor da seção temática)
Sandra Assunção, Université Paris Nanterre (editora da seção temática)
Anderson da Mata, Universidade de Brasília (editor da seção de tema livre)
Igor Ximenes Graciano, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (editor da seção de tema livre)
Leila Lehnen, Brown University (editora da seção de tema livre)
Milton Collonetti, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (editor da seção de resenhas)
Edma Cristina Alencar de Góis, Universidade do Estado da Bahia (editora da seção de resenhas)
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