Escrevi este pequeno texto em 2014 para um portal que saiu do ar, anunciando a campanha Índio É Nós, deflagrada em abril daquele ano. Fui procurá-lo por causa do senador Heinze: nele cito o então deputado federal. Ele foi curiosamente eleito naquela mesma época "racista do ano" pela Survival. No dia em que escrevo esta nota, lembrei do excelentíssimo parlamentar porque ele defendeu posições pró-vírus na CPI da Pandemia, fazendo o louvor de remédios ineficazes.
Resolvi trazer para cá o velho textinho, um tanto perplexo pelo fato de um político tão prestigiado por seus eleitores (o mais votado em seu Estado, Rio Grande do Sul), e com tal destacado renome no exterior, ter-se alinhado (certamente por algum equívoco) a uma posição, em termos de políticas de saúde, vizinha do genocídio, segundo juristas como Deisy Ventura.
P.S.: Relendo, observo que nenhum dos problemas apontados foi resolvido. A situação desastrosa agravou-se. As ilegalidades daquele momento, pré-golpe de 2016, permaneceram, à falta de algum Poder competente para assegurar os direitos dos povos indígenas, que continuam a ser alvo de contínuos golpes. Ademais, agora se tornam vítimas do impacto genocida da pandemia, absurdamente minimizada por agentes políticos como os citados.
“Índio é nós”: Motivos para a mobilização em prol dos direitos e das terras dos povos indígenas
Pádua Fernandes
1. “Por trás desta baderna”: a incitação ao ódio, ou o que se chama de ordem
Por que será que, de uma hora pra outra, tem que demarcar terra de índio e quilombolas? O chefe dessa vigarice orquestrada tá na antessala da presidência da república e o nome dele é Gilberto Carvalho. É ministro. [...] Por trás desta baderna, desta vigarice, está o CIMI, que é uma organização cristã. Que de cristã não tem nada. Está a serviço da inteligência norte-americana e europeia para não permitir a expansão das fronteiras agrícolas do Brasil [aplausos].
Esses vídeos foram publicados no início de 2014 e geraram impacto na opinião pública, o que fez Heinze voltar atrás em relação aos gays, afirmando (numa reiteração cordial do preconceito) que até corta o cabelo com eles e os recebe em casa, mas não em relação a índios e quilombolas2.
Tem no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete índios, negros, sem terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete deste senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa gente vá resolver nosso problema [aplausos]3
2. A solução final, ou para os ruralistas a Constituição ainda não foi violada suficientemente
É importante notar que as vociferações da bancada ruralista estão em divergência flagrante com a realidade: não só o governo de Dilma Rousseff foi o que menos demarcou terras indígenas desde Collor, como o ministro Gilberto Carvalho não pode, de forma alguma, ser caracterizado como amigo das causas indígenas. Quando lideranças indígenas dos rios Xingu, Tapajós e Teles Pires foram, em junho de 2013, a Brasília protestar contra os projetos hidrelétricos nos rios Teles Pires e Tapajós, o Ministro recusou-se a encontrá-los – assessores e soldados do Exército os receberam6.
Em uma ocorrência mais grave, os índios Munduruku interpelaram-no judicialmente por injúria e difamação, pois divulgou uma nota, em 6 de maio de 2013, acusando as lideranças desse povo de desonestidade e de garimpo ilegal7.
Diversos projetos em trâmite no Congresso Nacional têm como finalidade retirar direitos dos povos indígenas. Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla fizeram levantamento no fim de 2013, com destaque para a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 215, que deseja alterar a Constituição da República para que a competência de demarcação das terras indígenas passe para o Congresso Nacional, que ganharia, dessa forma, uma atribuição típica do Poder Executivo8.
Em maio de 2013, o governo federal suspendeu as demarcações no Rio Grande do Sul e no Paraná (onde há interesses eleitoreiros da então Ministra Gleisi Hoffmann). Em dezembro do mesmo ano, resolveu propor a mudança da regra das demarcações para torná-las ainda mais lentas, fazendo-a passar por vários Ministérios, subordinando os direitos originários dos povos indígenas, reconhecidos pela Constituição da República, aos interesses das empresas de mineração, à ideologia da segurança nacional e ao agronegócio. A proposta desagradou, previsivelmente, aos índios, mas também à bancada ruralista, com Heinze como o porta-voz da insatisfação, reclamando que, como a decisão ainda ficaria com a Funai, os “produtores” ainda ficariam a mercê de “laudos antropológicos fraudados” 9.
Voltemos aos discursos do fim de 2013. É basicamente estúpido dizer que “de uma hora para outra” se estão demarcando terras, tendo em vista que a Constituição previu um prazo de cinco anos, que terminou em 1993, para fazê-lo, e que o governo tem paralisado tal ação. O discurso de ódio dos deputados parece apontar em outra direção, para o que a senadora (TO/PMDB) e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu, caracterizou desta forma: “Depois que nós finalizarmos a questão indígena, eu quero saber qual é o outro tema que eles vão inventar para poder atrapalhar a agropecuária brasileira.”
A alusão à solução final ocorreu em audiência pública da Comissão de Agricultura em 11 de dezembro de 2013 na Câmara dos Deputados, como conta Luísa Molina. O discurso racista e de ódio contra os índios encontrou reverberação segura no coração do Poder Legislativo:
Nós vamos fazer esse enfrentamento. Um enfrentamento duro. Em Mato Grosso do Sul e em todo o país", afirmou o senador Waldemir Moka (PMDB-MS). Aplausos e as expressões de satisfação que rondaram o auditório quando o deputado Giovanni Queiroz (PDT-PA), ao falar de como "lidaram" com "o problema indígena" no seu estado com violência. "Ninguém mais contrata advogado. Entrou hoje [indígena na terra], sai na madrugada do dia seguinte. Sai debaixo de cacete". Ele prossegue, aconselhando outros a contratarem empresas de segurança: "4 horas da manhã você aborda o pessoal [que entrou na terra], chega o cravo no primeiro que reclamar, dá-lhe um cacete, bota em cima de um caminhão e manda devolver". Queiroz, sem disfarçar um racismo quase caricato, disse ainda: "[os índios] querem ser civilizados. Nós todos um dia fomos índios. Nós, aliás, fomos macacos.10
Esse discurso racista tem-se mostrado sem pudor nos Poderes oficiais e tem encontrado reverberação na grande imprensa, com suas críticas aos movimentos étnicos (que seriam “racialistas”), que teriam resultado, na ridícula expressão da presidente da CNA, em uma “ditadura antropológica”; um curioso regime autoritário em que os detentores do poder seriam diariamente desmoralizados e ameaçados, e os seus beneficiários, expulsos e mortos.
Tal situação de violência crescente contra os povos indígenas ocorre em uma situação de endêmica impunidade dos crimes contra extrativistas, índios e populações tradicionais, e de retomada da indústria barragista na Amazônia, ameaçando a sobrevivência dessas populações, com violação flagrante de normas constitucionais e internacionais.
3. O protagonismo indígena versus a produção legal da ilegalidade
Nestes últimos tempos, no entanto, vem retornando o protagonismo indígena nos protestos, que havia crescido no fim da ditadura militar, até chegar à Constituinte, e gerou as previsões sobre direitos indígenas na Ordem Social.
Tais manifestações, assim como as que ocorreram no meio urbano, partem, entre outros fatores, da constatação de que não há no Brasil, efetivamente, Justiça, nem mesmo no mero nível formal que se poderia esperar, talvez, de uma democracia burguesa. A indignação por isso moveu, por exemplo, o ato convocado pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), no dia 2 de outubro de 2013, em São Paulo. Ele ocorreu no contexto da mobilização nacional indígena, em defesa da Constituição da República, contra a PEC 215, que foi convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Tratou-se de uma marcha que partiu do Museu de Arte de São Paulo (MASP) até o Monumento às Bandeiras, que foi manchado de tinta vermelha. Lá, os índios, de várias etnias, fizeram rituais e brandiram a edição do Senado Federal da Constituição da República13.
O direito brasileiro, historicamente, refletiu a orientação política de que a existência dos índios deveria ser uma realidade provisória; explica Orlando Villas Bôas Filho que ele foi “preponderantemente avesso ao reconhecimento das formas de organização social e jurídica dos povos indígenas”; historicamente, “prevaleceu uma legislação de perfil assimilacionista (autodenominada integracionista)”14.
A doutrina de segurança nacional possuía o mesmo caráter em relação aos povos indígenas. O Estatuto do Índio, aprovado durante a ditadura militar, (Lei federal no 6.001 de 19 de dezembro de 1973), previa já no artigo primeiro que “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.”
A constituição de 1988 não manteve esse propósito; que o Estatuto do Índio permaneça, mesmo assim, é um sinal relevante de que muito daquela cultura política etnocida permanece, e persiste, por exemplo, nos discursos de ódio da bancada ruralista, e violência física contra esses povos.
Essas continuidades podem ser percebidas também no campo do direito; como elas são contrárias à Constituição e ao Direito Internacional, elas se manifestam em formas de produção legal da ilegalidade15.
Uma dessas formas é a criação de normas em flagrante oposição à Constituição e ao Direito Internacional. Nesse caso, usa-se a forma da norma jurídica para criar inconsistências dentro do próprio ordenamento jurídico. Um exemplo é a Portaria no 303, de 16 de julho de 2012, da Advocacia Geral da União, que prevê a possibilidade de o setor público construir em áreas indígenas sem consultar seus habitantes, violando a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho. Ela foi suspensa, pela segunda vez, em 2014, após protestos. No entanto, a bancada ruralista pressiona por sua vigência.
Dalmo Dallari denunciou que, com a Portaria, deseja-se emprestar o efeito de normas gerais às condicionantes estipuladas no caso específico da Terra Indígena Raposa Serra do Sol16 (Petição nº 3888-RR), julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Esse julgamento correspondeu a outro tipo de produção legal da ilegalidade, desta vez por meio de decisão judicial que contraria os princípios do ordenamento jurídico.
A doutrina de segurança nacional não foi acolhida pela Constituição de 1988. No entanto, o STF ressuscitou-a no julgamento da Raposa Serra do Sol, notadamente nesta condicionante (que foi copiada, tal em qual, no artigo 1º da portaria nº 303 da AGU):
[...] o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI.
Um dos exemplos ocorreu quando o presidente Médici fez ao Conselho de Segurança Nacional uma consulta sobre a transformação de certos Municípios em área de segurança nacional. No relatório feito pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, mais tarde presidente da república, general João Baptista de Oliveira Figueiredo, apresentado na 15a consulta ao Conselho de Segurança Nacional, em de 23 de abril de 1970, lê-se que
As obras em curso e o complexo hidroelétrico a ser instalado tornam, desde agora, os Municípios de TRÊS LAGÔAS e CASTILHO de particular importância sob os aspectos da Segurança Nacional. - A preocupação com a região já havia sido demonstrada pelos Ministros da Marinha e do Exército, quando, por ocasião dos trabalhos iniciais sobre os municípios de interesse da Segurança Nacional, solicitaram a inclusão do Município de TRÊS LAGÔAS, com base nos fatores político, econômico e militar.17
Outro exemplo da produção de ilegalidade por meios legais pode ser dado no uso do instituto processual da suspensão de segurança. Trata-se de uma medida de legalização da exceção no ordenamento brasileiro, criada em favor das pessoas de direito público. Ela tem sido empregada para viabilizar os grandes empreendimentos, permitindo que os presidentes de tribunais (que são, em geral, os magistrados mais politicamente influenciáveis) possam suspender liminares, sem invocar qualquer fundamento legal ou constitucional, a pedido do Ministério Público, ou de pessoas de direito público, em nome de qualquer coisa que etiquetem como grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Tais previsões, obviamente, não são neutras em termos de classes sociais e podem facilmente ser empregadas, como o estão sendo, para favorecer grandes empresas e remover populações: a validade dos direitos humanos é afastada em nome de interesses econômicos.
É exatamente esse instituto que está sendo empregado, no Supremo Tribunal Federal, para que uma obra como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, cujo licenciamento foi dado de maneira afrontosamente ilegal, sem atender as condicionantes ambientais, e ferindo o art. 231, § 3º, da Constituição Federal, autorizando a Usina sem a oitiva das comunidades indígenas, bem como a consulta a essas comunidades determinada pela Convenção 169 da OIT.
A 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do AI 2006.01.00.017736- 8/PA, decidiu pela paralisação do empreendimento, e proibir o seu licenciamento ambiental; Essa decisão foi parcialmente suspensa pela Ministra Ellen Gracie, em 2007, então no Supremo Tribunal Federal (já se aposentou) em Suspensão de Segurança. Sua decisão, em 2012, foi corroborada pelo Ministro Ayres Britto, sem fundamentação constitucional nem exame do mérito, apenas com a alegação que haveria perigo à economia pública se o empreendimento fosse paralisado. Note-se que se podem imaginar poucos danos maiores à ordem pública, aos índios e ao meio ambiente do que a conclusão dessa usina.
Dessa forma, o Judiciário brasileiro não tem cumprido a contento aquele papel imaginado em O Federalista, segundo o sistema de freios e contrapesos, de contrabalançar as maiorias políticas, protegendo as minorias e seus direitos constitucionais.
4. Por que “índio é nós”
A ação política organizada por meio de movimentos é necessária. Nisso, é importante que as organizações tradicionalmente ligadas à luta pelas populações indígenas não fiquem solitárias. Seus adversários têm poderosos aliados internos e externos, ligados ao setor de commodities.
Por isso está sendo lançada, no mês de março de 2013, a campanha “índio é nós”: uma série de eventos, no Brasil e no exterior, autônomos, porém conectado pela defesa dos direitos e terras indígenas. Seu manifesto, uma lista de textos e vídeos informativos, bem como as manifestações artísticas criadas ou cedidas para a campanha podem ser vistos nesta ligação: www.indio-eh-nos.eco.br
Nela, igualmente, está disponível para consulta a programação dos eventos (artísticos, acadêmicos, políticos – na verdade, todos serão políticos) da mobilização.
“Índio é nós”, portanto, tem o propósito de denunciar o discurso de ódio veiculado pela classe política e pelos meios de comunicação, sua afronta ao direito vigente e a critérios fundamentais de justiça, bem como suas falsas premissas científicas – como foi citado, na tentativa de justificar o racismo, está sendo ressuscitado até mesmo o darwinismo social nos discursos de congressistas.
Ademais, a campanha deseja demonstrar que os índios não estão isolados em sua luta e que a questão da sobrevivência desses povos não interessa apenas à Funai e aos antropólogos (como se fosse pouca coisa, aliás), mas a toda sociedade brasileira. Daí a necessidade de respeito aos “direitos coletivos atribuídos a populações definidas em termos raciais ou étnicos”, que não devem ser definidos como um simples instrumento para gestão e controle de populações, como bem demonstram Verdo e Vidal18. Se o fossem, por sinal, certamente não haveria tanta resistência à validade e à eficácia desses direitos no Brasil. É necessário afirmá-los pois, como sempre, os direitos, sem ação, são apenas papel.
O manifesto da campanha convoca à ação neste sentido:
Contra as barragens dos rios na Amazônia, os projetos anti-indígenas no Congresso Nacional e as milícias armadas que atacam impunemente as tribos; pela urgente demarcação das terras indígenas segundo critérios técnicos e não os interesses do agronegócio; pela real implementação dos direitos constitucionais e internacionais dos índios; pelos projetos de futuro inspirados pela indianidade, convidamos todos a se agregarem a esta campanha: Índio é nós.
Portanto, mesmo levando em consideração que a opressão data da colonização, é como se o golpe de 1964, para os povos indígenas, não tivesse terminado ainda.
Também por essa razão, esta campanha visa contribuir para a democratização do Estado brasileiro e, por isso, a todos interessa: índio é nós.
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