Eduardo Quina publicou durante a última pandemia Consanguíneo (Porto: Officium Lectionis, 2021). Quando o li, eu estava ensaiando o Requiem de Mozart no Coro da Cidade de São Paulo. Achei que se tratava de um encontro significativo, porque se trata de poesia sobre morte, mais especificamente da mãe.
Os poemas são curtos e em versos livres: em geral, cada divisão do livro soa como um poema só, dividido em pequenas unidades, uma em cada página. Na primeira parte do livro, "Morrer ou enlouquecer", um Miserere, lemos a referência entre a relação entre mães e filhos:
da terra nascem inócuas flores:
não sobrevivem ao sangue puro das mães (p. 21)
selam as veias com sanguepara silenciar a dor dos filhos: (p. 25)
minha mãe estava em mim
como uma constelação paciente
que sangrava a minha dor: (p. 27)
O ponto alto destas referências é provavelmente este: embora mortas, as mães continuam a alimentar os filhos:
pedem perdão dentro das suas sepulturas:
no interior do seu ventre há ainda alimento:
é o corpo em decomposição (p. 32)
Neste caso, trata-se da fonte da poesia. Estamos, pois, em terreno dos mitos que ligam o poeta à morte, como o de Orfeu. Quina, por isso, não soa nada falso quando assume esta linguagem mais próxima do simbolismo:
[agora guardo em mim seres imóveis
em forma de espectros:
depois solto-os à feição de aves
para que espalhem inocentemente a morte
ou
um deus em forma de suicídio] (p. 34)
Em linguagens mais prosaicas, passagens como essa não teriam lugar. Não é o caso da poesia de Quina, permeada de figuras de linguagem.
A segunda parte do livro é intitulada a partir de Leopoldo Maria Panero ("O jogo da cabra cega ou 'essa beleza demente da infância' [Vestigia Dei]"), o que nos faz esperar que a linguagem seja arremessada para as fronteiras da razão. Algo disso acontece, de fato, mas a grande marca da seção é a violência dos temas, especialmente na ligação entre infância e Igreja:
num charco de flores
o verme
apodrece numa pequena
concentração
de luz
[a criança estilhaça-se impotente
contra os vitrais da igreja] (p. 41)
[ninguém fala a tua
língua puta
ó deus] (p. 45)
Marca-se o anticlericalismo desta seção:
[é domingo:
deus descansa de todas as mortes]
no corpo que sangrasubsiste uma florpor entre os dedos lâminadosde impotência:
pétala a pétalacompões o rosáriodo sofrimento:é o crime pelo fogo roubado. (p. 160)
depois, há um espaço em ti que pode ser um lugar:
e escondes-me no teu útero paraque te possas ausentar. (p. 174)
escrevemos na rudeza das mãosa anatomia imprópria das sombras. (p. 185)
dentro de ti a dor. a dor torta. situada.como uma extensão de deus. (p. 207)
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