O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 2 de dezembro de 2023

"Consanguíneo": um réquiem escrito por Eduardo Quina

Eduardo Quina publicou durante a última pandemia Consanguíneo (Porto: Officium Lectionis, 2021). Quando o li, eu estava ensaiando o Requiem de Mozart no Coro da Cidade de São Paulo. Achei que se tratava de um encontro significativo, porque se trata de poesia sobre morte, mais especificamente da mãe. 

Os poemas são curtos e em versos livres: em geral, cada divisão do livro soa como um poema só, dividido em pequenas unidades, uma em cada página. Na primeira parte do livro, "Morrer ou enlouquecer", um Miserere, lemos a referência entre a relação entre mães e filhos:


da terra nascem inócuas flores:
não sobrevivem ao sangue puro das mães (p. 21)


selam as veias com sangue
para silenciar a dor dos filhos: (p. 25)


minha mãe estava em mim
como uma constelação paciente
que sangrava a minha dor: (p. 27)

O ponto alto destas referências é provavelmente este: embora mortas, as mães continuam a alimentar os filhos:

pedem perdão dentro das suas sepulturas:
no interior do seu ventre há ainda alimento:
é o corpo em decomposição (p. 32)

Neste caso, trata-se da fonte da poesia. Estamos, pois, em terreno dos mitos que ligam o poeta à morte, como o de Orfeu. Quina, por isso, não soa nada falso quando assume esta linguagem mais próxima do simbolismo:


[agora guardo em mim seres imóveis
em forma de espectros:
depois solto-os à feição de aves
para que espalhem inocentemente a morte
ou
um deus em forma de suicídio] (p. 34)

Em linguagens mais prosaicas, passagens como essa não teriam lugar. Não é o caso da poesia de Quina, permeada de figuras de linguagem.

A segunda parte do livro é intitulada a partir de Leopoldo Maria Panero ("O jogo da cabra cega ou 'essa beleza demente da infância' [Vestigia Dei]"), o que nos faz esperar que a linguagem seja arremessada para as fronteiras da razão. Algo disso acontece, de fato, mas a grande marca da seção é a violência dos temas, especialmente na ligação entre infância e Igreja:


num charco de flores
o verme
apodrece numa pequena
concentração
de luz

[a criança estilhaça-se impotente
contra os vitrais da igreja] (p. 41)


[ninguém fala a tua
língua puta
ó deus] (p. 45)

 Marca-se o anticlericalismo desta seção:


[é domingo:
                    deus descansa de todas as mortes]


A parte seguinte, "Natureza morta", continua o anticlericalismo da anterior e acusa o "usurário das promessas de deus". 
O livro traz uma nova divisão chamada "Maligno", destaca com as epígrafes da conhecidíssima frase de Adorno sobre poesia e Auschwitz e o artista português Rui Chafes: "A beleza é impossível sem as marcas da morte". De fato, há uma diferença: predomina a visão de "estamos mortos e ainda respiramos" e a escritura de uma "biografia insuportável da perda" desde a infância. A maternidade volta a aparecer, porém não na figura de uma pessoa, mas como fonte do aniquilamento: "um útero guarda ainda a aflição / de um corpo."
Em "Ausência (regresso a Orpheu)"; o mito é nominado no próprio título da seção. Esta parte me parece menos bem realizada: esta invocação explícita aos deuses é menos poderosa do que as outras partes faziam e o discurso poético perde intensidade. Uma passagem como "[afinal, o que pode a poesia?]" tanto enuncia o problema quanto é parte dele.
Em "Labirinto", concentra-se o discurso no símbolo da flor (que aparece por todo o livro, às vezes metonimicamente com as referências a pétalas). 

no corpo que sangra
subsiste uma flor
por entre os dedos lâminados
de impotência:
pétala a pétala
compões o rosário
do sofrimento:
    é o crime pelo fogo roubado. (p. 160)

Novamente, a referência ao mito no verso final (Prometeu) vem explicar a imagem, o que não é a melhor coisa a se fazer em poesia.
Esta seção tem subdivisões; depois do "Pórtico", chegam "Sombras", que citam o próprio poeta em epígrafe, suas "sombras mortas entre os dedos". Aqui, o complexo materno proporciona a força de passagens como esta:

depois, há um espaço em ti que pode ser um lugar:
e escondes-me no teu útero para
que te possas ausentar. (p. 174)

Estes versos parecem anunciar a poética do livro:

escrevemos na rudeza das mãos
a anatomia imprópria das sombras. (p. 185)

Na última subdivisão, "Sem saída", em que a epígrafe novamente revisita poemas anteriores seus, insiste-se no simbolismo com referências religiosas e/ou antirreligiosas: "a minha memória/ são as cicatrizes de deus."
Depois da "Cegueira", um "Epitáfio". São dois poemas, porém o último devora o anterior, que tem passagens explicativas a contrastar com as melhores passagens de Consanguíneo. O final é interessante: o gesto lembra o de Cecília Meireles na parte 7 de Elegia, outro poema fúnebre, que a poeta dedicou à avó Jacintha Garcia Benevides e publicou no fim de Mar absoluto. Nos dois casos, o poeta morre também. Cecília, porém, continua o poema.
O livro de Quina é longo, mas suas partes fortes compensam de longe as que caem na tentação de explicar ou reiterar o verso. 
Um réquiem, naturalmente, é uma missa e, por essa razão, pressupõe uma relação forte com o sagrado, seja para consagrá-lo, seja para lutar com ele, em revolta contra a morte. O poema final revela a fé de que deriva a força desta poesia -- ela só pode acreditar na dor:

dentro de ti a dor. a dor torta. situada.
como uma extensão de deus. (p. 207)

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