Terminei um livro neste ano, o que me tomou muito tempo: Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, publicado pela Patuá. Por essa razão, escrevi pouco aqui e alhures. A obra lida muito com a repercussão do caso na imprensa: a maior parte das fontes são jornalísticas, o que me fez perceber que o caso que estudei, a partir de certa altura, deixou de ser noticiado.
Trata-se de um processo sobre crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que não deixam de ter continuidades nos dias de hoje, inclusive em termos de exploração eleitoral: a apologia aos crimes do Estado continua a dar votos. Por isso, era tão politicamente sensível e conveniente calar a denúncia desses crimes em momentos de golpe, como o de 2016, ou de apoio à volta ostensiva dos militares ao poder. A pauta jornalística havia mudado, pois guinou para a direita.
Dessa forma, pensei que o súbito vazio de notícias sobre um caso de reconhecimento judicial de tortura também presentava uma fonte de pesquisa, porém ao inverso: a ausência de fontes jornalísticas documentava algo: uma tomada de atitude da imprensa, que, aparentemente, havia decidido esquecer a pauta politicamente sensível para a direita. Mesmo na morte do coronel, boa parte da imprensa resolveu ignorar o caso e dizer que ele foi "acusado de torturas" ou algo parecido, e não que a tortura no DOI-Codi de São Paulo tinha sido judicialmente reconhecida em primeira instância, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e no Superior Tribunal de Justiça, nada menos.
Pesquisei e citei de periódicos dedicados aos militares até veículos identificados com pautas de esquerda, como o Brasil De Fato. Meios de comunicação de esquerda em geral eram mais enfáticos contra agentes da ditadura. Mas um problema que atravessa todo o espectro ideológico é a falta de acúmulo: tudo é uma novidade permanente, o que é um problema tanto da imprensa e de seus profissionais, como dos leitores e dos semi-leitores, que devem ser a maioria, se excluirmos os não leitores. Poucos poderão ler um texto além das manchetes.
Conto uma anedota pessoal. Na época em que eu lecionava, uma colega, que tinha outra formação, estava preocupada com uma disciplina que passaria a lecionar em pós-graduação de Direito lato sensu. Busquei tranquilizá-la afirmando que não se tratava de assunto de "dogmática jurídica" (nome curioso que os advogados atribuem a seus assuntos técnicos), portanto a formação dela era adequada para o tema específico, e que a matéria era ensinada no primeiro ano de graduação e "todas as turmas são de primeiro ano", mesmo as de pós-graduação. Uma semana depois, ela confirmou que eu estava certo...
Em larga escala, trata-se de como funciona o país. Dessa forma, tudo se torna "um museu de grandes novidades", para citar "O tempo não para", de Cazuza e Arnaldo Brandão.
Escrevi aqui em 2022 como os áudios de julgamentos do Superior Tribunal Militar na época da ditadura foram liberados judicialmente por iniciativa do advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes, que já os publicou parcialmente, para que anos depois a imprensa grande tratasse o material publicado anos atrás como "inédito", e que teria sido descoberto recentemente por certo historiador.
A imprensa grande, em vez de grande imprensa. Contudo, o problema ocorre também com periódicos de esquerda que desejam cobrir pautas que tendem a ser ignoradas pelos grandes meios de comunicação. A Agência Pública, por exemplo, fez uma interessante série de matérias sobre as dez empresas investigadas por equipes escolhidas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp, a partir de recursos advindos do termo de ajuste de conduta da Volkswagen (denunciada por sua cumplicidade com a repressão política durante a ditadura militar) com o Ministério Público Federal.
Essas equipes deveriam investigar crimes de lesa-humanidade (imprescritíveis) que pudessem suscitar novas ações do Ministério Público. O resultado gerou um informe público, que pode ser consultado por todos, e, outro, mais completo, que está com as autoridades, para que elas estudem a instauração de inquéritos.
A Agência Pública teve acesso a todo esse material e publicou matérias. Sobre a Folha de S.Paulo, uma das empresas investigadas, lemos que os documentos "indicam que a colaboração" do jornal "com a ditadura foi mais profunda do que se sabia". Lemos que, "segundo a pesquisa o grupo Folha teria emprestado carros de distribuição de jornais para que agentes da repressão os usassem".
Este é um exemplo de falta de acúmulo: a tese de Beatriz Kushnir que trata desse empréstimo foi publicada em 2004 (Cães de guarda: jornalistas e censores) e foi citada pela Comissão Nacional da Verdade. A pesquisa, no que foi mostrado no relatório aberto, confirma o que já estava em Kushnir e na CNV, e traz novas entrevistas, que Marina Amaral destaca no Jornal do Brasil.
Outro caso foi a Petrobras: a matéria que a Agência Pública publicou em 30 de maio de 2023 anunciava que "Petrobras participou de tortura e monitorou orientação sexual de funcionários na ditadura". Também não era novidade, claro: em 2022, apresentei trabalho a seis mãos, meu, de Janaína de Almeida Teles e Bruno Boti Bernardi no Seminário Internacional de Políticas da Memória, em Buenos Aires, onde, aliás, estava boa parte da equipe do projeto CAAF que pesquisou a Petrobras. Essa equipe ainda não tinha pesquisado o assunto da orientação sexual dos empregados. Para quem quiser consultar os trabalhos, eles são as da mesa 15 do seminário de 2022, coordenada por Vitoria Basualdo e Andrea Copani: http://conti.derhuman.jus.gov.ar/2021/08/seminario-xiii-ponencias.php
Nosso título era "Responsabilidad empresarial: violaciones de derechos humanos cometidaspor Petrobras durante la dictadura militar brasileña" Eu falei, entre outros temas, como tortura, violação de direitos dos povos indígenas, a sala secreta de espionagem, a DIVIN etc., dos documentos que indicavam que a Petrobras monitorava a orientação sexual dos empregados seus e das empresas contratadas:
Entre as informações coletadas sobre funcionários estavam dados sobre “comunismo” e “homossexualismo”. Nas fichas ISF (“investigação socio-funcional”), referente aos candidatos a trabalhar nas empresas do grupo Petrobras, encontramos anotações sobre “homossexualismo”, como problema, em relação à Refinaria Paulínia; como motivo de demissão, a empregado de empresa que prestava serviços à Fronape (Frota Nacional de Petroleiros); como “restrição grave” para empregado contratado na própria Petrobrás, entre outros. As fichas “de informação confidencial” dos empregados incluíam quesitos como “Pratica atos de homossexualismo?”.
Renan Quinalha havia localizado alguns desses casos em sua tese sobre a “política sexual da ditadura brasileira”, destacando que “Empresas públicas, como a Petrobrás, foram especialmente influenciadas pela paranoia homofóbica dos órgãos de informação. A orientação sexual dos funcionários aparecia como um dado fundamental para a decisão de dispensar ou mantê-los no emprego.” (Quinalha, 2017: 235).
Ressaltei, tanto no texto quanto na exposição, que quem havia descoberto a questão era Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp e conhecido pesquisador da história e dos direitos da população LGBTQIA+ no Brasil. Por isso, não se tratava de uma descoberta nossa ou mesmo, depois, da equipe do CAAF. O nome de Quinalha, porém, não é citado na matéria da Agência.
Dei alguns poucos exemplos nessas questões ligadas ao passado recente, da ditadura militar, mas é evidente que o problema é mais amplo. Essa falta de acúmulo prejudica a discussão na esfera pública: tudo parece sempre voltar ao ponto zero. Assim, talvez diriam alguns, os velhos invasores podem camuflar-se de novos "descobridores" das Américas.
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