Nele, citei pareceres de constitucionalistas portugueses (principalmente Carlos Pamplona Côrte-Real), invoquei Bentham com o "aumento do estoque de prazeres que toda pessoa (homem ou mulher) tem em seu próprio poder" e fui aos tempos da Assembleia Constituinte que gerou o texto constitucional vigente (na área de história do direito, não há muita gente que trabalhe com esse material dos tempos da presidência de Sarney).
José Genoino apresentou emenda para que se incluísse, entre as vedações de discriminação, a por "orientação sexual". Ela acabou sendo derrubada. Enquanto ainda estava de pé, havia deputados-pastores que viam nela a consagração de uma anormalidade, e outros constituintes que a defendiam, no entanto, em termos discriminatórios. Um exemplo foi Alceni Guerra que, em 1º de junho de 1987, comentou o trabalho da Subcomissão VII-c (Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias), na qual atuou:
Uma abordagem sobre a criminalização da discriminação, que não existia na Constituição anterior, está premiada aí. E, no § 1º quando se específica que ninguém será prejudicado, ou privilegiado, em função de diversos fatores, eu chamaria a atenção para uma expressão extremamente polêmica e que foi uma das duas votadas no substitutivo, que é a palavra orientação sexual." A polêmica, ao redor dessa expressão, foi muito grande; foi objeto de votação e, por uma larga maioria, permaneceu, aqui, no nosso anteprojeto. A expressão "orientação sexual" que definiu uma prevalência, em relação a outras expressões, reivindicadas pelos homossexuais, que compareceram e expuseram suas razões na Subcomissão, ela tem uma força de expressão, uma força dialética, acentuada, inclusive, pelo Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais, que fez o Anteprojeto Afonso Arinos. S. Ex.ª acha que, realmente, a expressão "orientação sexual" é adequada para se colocar num texto constitucional, ao contrário de comportamento sexual, que daria outras interpretações, ao contrário de homossexualismo, que daria outras conotações. Parece-me que a razão dela estar aqui não é para configurar práticas, como casamento entre homossexuais, ou para permitir uma maior liberdade de atuação para os homossexuais; ao contrário, ela está colocada, aqui, neste texto, para se qualificar o homossexual como um indivíduo absolutamente igual aos outros, perante a lei.
Há um problema grave de raciocínio nesse trecho; ora, como o homossexual pode ser "igual aos outros, perante a lei", se lhe são vedados o casamento e os direitos dele derivados? A igualdade perante a lei deveria gerar direitos iguais; esse constituinte, pelo contrário, não queria "casamento entre homossexuais" e "uma maior liberdade de atuação para os homossexuais".
Outra deficiência flagrante do discurso é a violação de um mínimo senso de realidade; qualquer um poderia constatar em 1987 que não havia essa "liberdade de atuação". Houvera, o "armário" não precisaria existir; houvera, homossexuais não seriam mortos nem espancados devido a sua simples orientação sexual. E isso continua a acontecer em 2011.
O nome dessa particular incompatibilidade com a realidade e a razão chama-se homofobia.
No texto para o Amálgama, lembrei da eficácia normativa do princípio da igualdade. E ora leio Matrimonio igualitario: Intrigas, tensiones y secretos en el camino hacia la ley de Bruno Bimbi, que conta a trajetória que culminou na aprovação da lei argentina que acabou, naquele país, com a discriminação contra homossexuais no direito ao casamento.
Bimbi conta que foi a lei espanhola de 2005 que inspirou a militância argentina (mas nem todos militantes concordaram...) a seguir o caminho da luta pelo casamento, e não pela simples união civil.
Pedro Zerolo, assessor de Zapatero, havia convencido o Primeiro Ministro da Espanha a defender o projeto, enfim vitorioso, que acabou com aquela discriminação. Zerolo foi a Argentina em 2006 falar da lei espanhola na Câmara dos Deputados. Escreve Bimbi, que se encarregou da agenda do assessor de Zapatero daquele lado do Rio da Prata: "Pedro hablaba de matrinonio, explicando el porqué de la consigna 'Los mismos derechos con los mismos nombres' y contando cómo la derecha española, para impedir la conquista de la igualdad jurídica, había impulsionado la 'unión civil'[...]" [p. 31].
Se os cidadãos são iguais, devem ter "os mesmos direitos com os mesmos nomes" - não outra é a eficácia normativa do princípio constitucional. O matrimônio igualitário decorre do princípio da igualdade - é necessário repetir essa noção, para que os antolhos da homofobia não continuem a cercear a visão político-jurídica.
Do outro lado do Rio da Prata, as coisas andam mais atrasadas. No Congresso brasileiro, nem mesmo um status jurídico inferior para os casais do mesmo sexo foi aprovado ainda: a mera "união civil" ainda é o máximo que parlamentares de esquerda (com raras exceções como Jean Wyllis) parece aceitar, e muito mais do que a direita quer engolir. Já, na Espanha, foi a direita que desejava esse instituto...
No Brasil, tais conservadores espanhóis seriam considerados temerários progressistas, tamanha é a resistência contra a igualdade neste país em que os racistas negam a existência do racismo, e os homófobos dizem querer preservar-se da imaginária "heterofobia".
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