O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 20 de agosto de 2011

Portugal, Alberto Pimenta e o Desencantador


Portugal, nesta atual fase falimentar, apresenta mais um capítulo do seu abandono da nossa língua comum (não há nada de estranho que o Museu da Língua Portuguesa tenha aparecido no Brasil e não lá). Eduardo Pitta conta que seu país abandonou as cátedras de português no Canadá e nos Estados Unidos.
A ditadura salazarista usava o instrumento de demitir os Leitores de Português no exterior para pressionar aqueles que não seguiam as diretrizes do fascismo. Isso ocorreu com Alberto Pimenta (na foto abaixo), que, em Heidelberg, se recusou a fazer campanha pela guerra colonialista - porém, demitido pelo governo português em 1963, a Universidade contratou-o.
Embora as autoridades portuguesas tivessem pressionado os alemães para que demitissem Pimenta, tudo foi em vão (a tanto não chegava o colonialismo lusitano) e ele permaneceu no exílio até 1977, quando decidiu voltar para Portugal, já pós-fascista.
No entanto, o que era um instrumento de pressão política do fascismo está a virar medida generalizada decorrente da crise do capitalismo na Europa.

Pimenta lançou no início do ano Reality Show ou a Alegoria das Cavernas, livro que inclui disco com poemas do autor musicados por Alexandre Augusto, Pedro Soares e João Alves, na voz de Ana Deus.
O Desencantador, em belo projeto gráfico de Maja Marek (a sobrecapa deixa ver, do título, apenas "encanta"), foi lançado pela 7Nós.
Esse desencantador tem algo que ver com o desencantamento do mundo weberiano? De qualquer forma, os mitos são retomados segundo a visão própria de Pimenta. Ele faz este uso de Ísis e Osíris:

e então dessa vez por precaução
retalhava o corpo de Osíris
em catorze partes
que espalhadas pelas águas
haviam de formar o primeiro soneto da
história [p. 17]

Retomados para serem jogados à terra ou ao fosso da realidade de hoje:

e então na pálida claridade que se abria
ia encontrando e recolhendo
os pedaços do corpo
um braço aqui
um pé mais adiante
exactamente
como em todas as guerras [p. 18]


As oscilações da história, entre sonho e realidade, o Egito antigo e lugar nenhum, terminam em um movimento de fuga (pelo menos no meu final favorito - há dois finais diferentes, mas cada exemplar somente apresenta um deles).
Creio que o Reality Show é mais forte na sua exploração e inversão das representações de hoje. Mas O Desencantador, que deriva de uma experiência dos delicados objetos de Autobiographie Mutuelles (assim mesmo, sem concordância), que realizou com César Figueiredo em 2008, ao mesmo tempo é e não é um interlúdio lírico na imensa obra de Pimenta. É notável que nada que o comerciante (o personagem principal e narrador do livro) tente transportar e comerciar se mantenha: ou o objeto é tomado, ou some por desencantamento. Nesse aspecto, parece-me um retrato original da crise europeia e da progressiva e pesada imaterialidade do capitalismo de hoje.

Nota: As duas primeiras fotos, tirei-as em julho de 2011 na beira do Tejo.

E um adendo: os olhos de Pimenta fazem-me lembrar o primeiro poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, que termina: "O rosto com que fita é Portugal." Aqui, bem pode ser o rosto que fita a crise.
E a crise está latente em todo Mensagem; as três primeiras palavras desse primeiro poema são "A Europa jaz", e o penúltimo verso é "O Ocidente, futuro do passado." Agora, nem mesmo o presente.
Não sei em que medida Pimenta resolveu dialogar com Pessoa em O Desencantador; mas essa ideia me vem quando lembro que Mensagem, no último poema, após a constatação da histórica ruína política do Império Português, tenta a sua ressurreição mística com símbolos como estes:

Não foi para servos que nascemos
De Grécia ou de Roma ou de ninguém.
Tudo negamos e esquecemos:
Fomos para além.

[...]

O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anônimo e disperso
De Osíris, Deus.

Quando lembramos disso, não podemos deixar de ver no livro novo de Pimenta uma mágica desencantadora dessas ilusões (que, em Pessoa, derivam do sebastianismo): o personagem principal torna-se servo, senão do rei, de suas próprias ilusões - e disso naufraga - e reunir o corpo de Osíris não impede que a ilha desapareça.
Pimenta consegue que os universos egípcio e grego do livro não constituam um refúgio no passado contra o presente. Nem mesmo o personagem do poeta, no livro, logra criar esse refúgio onírico. As "ilhas afortunadas" são mesmo, retomando Pessoa, "terras sem ter lugar". Aqui, cito Pimenta:

então a princesa dos três seios

não sei de que princesa falas
mas todas as princesas
são uma ilusão passado o primeiro dia [p. 62-63]


(os sonhos
cada vez mais me convenço disso
não têm mesmo
lógica nenhuma)
o mais provável
era ser um filme
americano [p. 52]

Em momentos como esses, temos um desencanto lúcido que no outro poeta, em Mensagem, irrompe às vezes: "Mas, se vamos despertando,/ Cala a voz, e há só o mar."
Sabemos que, em Pessoa, isso logo daria no réquiem que é "Elegia na sombra", poema de derrota de um país mergulhado no fascismo (ele era antifascista, vejam a reunião de seus textos contra Salazar).
A dimensão do nacionalismo, em contrapartida, falta inteiramente ao livro de Pimenta. E ele está certo: a crise de que ele fala não é só portuguesa, mas de um sistema.

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