O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Kelsen contra Toffoli e o Supremo Tribunal Federal

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, fruto da última indicação ao STF feita pelo presidente Lula, publicou na página A3 da Folha de S.Paulo "Hans Kelsen e a teoria pura do direito", breve artigo sobre o jurista austríaco (livro autobiográfico seu foi lançado nesta semana) que, perseguido pelos católicos na Áustria e, depois, pelos nazistas na Alemanha e na Tchecoslováquia, países em que não pôde mais trabalhar, lecionava Direito Internacional Público no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais em Genebra, até que a Guerra fez com que imigrasse para os Estados Unidos. Vejam aqui uma nota biográfica com bibliografia por Bersier Ladavac.
É raro ler sobre os grandes juristas do passado nesse tipo de jornal - talvez os 130 anos de nascimento de Kelsen, que serão completados em 11 de outubro, possibilitem a publicação de mais textos desse tipo. Quando estudante de graduação, ouvi coisas loucas como um suposto nazismo de Kelsen (tratava-se de professores que, provavelmente, ouviram de muito longe ecos de Radbruch), que, como filósofo político, era liberal, e, na condição de judeu, teve de exilar-se mais de uma vez...
É importante, pois, retificar equívocos ainda correntes sobre o grande jurista. O Ministro comete erros, infelizmente. A Teoria Pura do Direito, livro cuja primeira edição é de 1934, e que foi muito reformulado em 1960 (somente nesta edição foi publicado no Brasil) foi uma tentativa de ir além do que John Austin (o jurista do século XIX) em determinar um campo específico para a ciência do direito. Isto é, buscar uma pureza epistemológica para essa ciência, a fim de que o estudo do jurista não se confundisse com o modo como os sociólogos, por exemplo, estudam o direito. Um normativismo que tenta expurgar o estudo da norma jurídica dos aspectos políticos, sociológicos, econômicos - estudos válidos, claro, mas que não correspondem ao trabalho do jurista, que deveria, segundo Kelsen, concentrar-se apenas na descrição do direito positivo.
Essa pureza metodológica do positivismo jurídico de Kelsen foi alvo de seguidas críticas dos Realistas, de outros positivistas, dos marxistas etc. Sem dúvida, ele deve ser estudado, mas não como um "porto seguro" (expressão que Toffoli emprega), pois esse não é o papel de nenhuma teoria séria - confortar mentes cansadas de enfrentar as ondas e maremotos da dúvida - e sim provocar, fazer ranger o pensamento. Se Kelsen não for mais capaz de fazer isso, é porque ele está morto. Ou virou auto-ajuda jurídica.
Para verificar se Kelsen ainda tem algo a dizer (e sobre o Brasil, segundo diz Toffoli, o que resta a demonstrar), é necessário estudá-lo. Temos aí um grave problema no texto do Ministro do Supremo, vemos erros que não encontram suporte na obra que ele parece invocar, a "Teoria Pura do Direito".
O Ministro escreve que teríamos, nessa Teoria, "a Constituição como ápice de uma pirâmide de regras jurídicas". O que faz Kelsen ele mesmo e não um positivista vulgar é que ele REJEITA essa definição primária. Se a Constituição fosse o fundamento do ordenamento jurídico, ele escreve, haveria ainda o problema de buscar o fundamento dessa Constituição para chegar ao que fundamenta o direito positivo... Tratando-se de uma teoria "pura", normativista, ele não poderia postular esse fundamento em algo que não fosse um dever-ser. Ele resolve o problema propondo como esse "ápice" a chamada "norma fundamental", que não pertence ao direito positivo - ela precisa ser uma norma não positivada, para que possa fundamentar o direito positivo (senão, ele teria fundamento apenas em si mesmo...)
Já na primeira parte do livro, "Direito e natureza", o jurista afirma que a norma fundamental "não é uma norma posta através de um ato jurídico positivo, mas - como o revela uma análise dos nossos juízos jurídicos - uma norma pressuposta, pressuposta smepre que o ato em questão seja de entender como ato constituinte [...] Em tal pressuposição reside o último fundamento de validade da norma jurídica [...]" (cito da edição portuguesa de João Baptista Machado, publicada pelo Ed. Arménio Machado em 1979, em Coimbra, p. 77 - essa tradução também foi publicada no Brasil).
Temos assim uma teoria positivista que considera que somente o direito positivo tem natureza jurídica (o direito natural, por sua vez, não passaria de política ou de moral), embora a norma que o fundamente não pertença ao direito positivo. Na edição definitiva da Teoria Pura do Direito, Kelsen se preocupa em deixar bem claro que a norma fundamental tampouco é direito natural, pois não tem conteúdo: ela não exige que a Constituição seja de certa forma ou de outra.
Toffoli, nesse ponto, barateou a filosofia de Kelsen. Mas há outro problema, muito mais grave, um recalcamento que diz bastante não só a respeito da cultura jurídica brasileira quanto do próprio Supremo Tribunal Federal, marcados por um pronunciado provincianismo jurídico e um isolacionismo em relação ao direito internacional. O Ministro simplesmente apaga da memória que o escalonamento proposto por Kelsen tem duas versões: na primeira, o direito constitucional está acima do direito internacional e, na segunda, é o direito internacional que prevalece... Nesse caso, a norma fundamental do direito internacional é que corresponde ao "ápice" do escalonamento das normas jurídicas, e é a norma que dá validade ao direito internacional costumeiro - que prevalece sobre os tratados internacionais.
Se Kelsen foi um constitucionalista, ele também foi um internacionalista - e talvez esta última dimensão do pensamento dele seja, de fato, a mais decisiva para compreendê-lo. Tenho ao meu lado The Law of the United Nations: A Critical Analysis of Its Fundamental Problems, obra de 994 páginas de análise da Carta das Nações Unidas, que mostra os impasses da abordagem normativista, e ainda não publicada em português. O que ele produziu nesse campo foi imenso, e supera os escritos de direito constitucional. A Unijuí e a Fondazione Cassamarca, na notável coleção "Clássicos do Direito Internacional", acabam de lançar Princípios do Direito Internacional (com introdução de ninguém menos do que François Rigaux - pena que a revisão deixou um pouco a desejar), livro que escreveu nos EUA em 1952. Todavia, sua primeira obra em que o Direito Internacional é decisivo é de 1920: O problema da soberania e a teoria do Direito Internacional, em que anuncia a Teoria Pura do Direito, que só viria à luz em 1934, depois que o autor teve de deixar a Alemanha. Ele ministrou cursos em 1926 e 1932 na Academia de Direito Internacional de Haia. Direito e paz nas relações internacionais, de 1942, Paz através do Direito, de 1945 são outros dos trabalhos que produziu nesse campo. Não os temos no Brasil, se não me engano.
Que Toffoli tenha deixado de lado essa enorme faceta de Kelsen, jurista que participou dos trabalhos para o Tribunal de Nurembergue, não surpreende nada, porém. O Supremo Tribunal Federal, em decisões-chave, decidiu de forma frontalmente contrária ao pensamento do grande internacionalista, negando a eficácia do direito internacional dos direitos humanos.
Cito agora artigo de 1936 de Kelsen, recolhido em Écrits français de droit international, livro organizado por Charles Leben em 2001 para a PUF:

[...] a doutrina que pretende que as normas internacionais só criam direitos e obrigações para o Estado como tal e não para os seus órgãos ou para seus subordinados resulta em privar as normas do direito internacional de toda eficácia jurídica. Se elas criam direitos ou obrigações somente para o Estado como tal, isto é, para uma pura construção jurídica, elas não obrigam a ninguém e, portanto, não obrigam a nada.
Essa consequência lógica - que parece escapar à maior parte dos autores - trai claramente a tendência política que está na base dessa teoria. É a tendência de diminuir o máximo possível o alcance do direito internacional e de subordinar sua função essencial, que é - como função essencial de todo direito - de conferir direitos e obrigações, à intervenção indispensável dos órgãos criadores do direito de cada Estado particular: isto é, em outros termos, a tendência de manter a soberania dos Estados particulares. É o dogma da soberania que está, em última análise, na base da concepção segundo a qual só o Estado pode ser sujeito de direito no direito internacional. [tradução minha]

Aqui, Kelsen ataca o dualismo e Anzilotti, reafirma sua posição de que os indivíduos também são sujeitos de direito internacional, bem como relativiza o "dogma da soberania". Quando o governo de Dilma Rousseff nega os direitos das comunidades indígenas e despreza a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Belo Monte, está fazendo justamente o oposto do que Kelsen defendia. O mesmo deve ser dito em relação ao Supremo Tribunal Federal - e o caso da lei de anistia foi somente um de vários exemplos.
Dessa forma, é muito curioso que Toffoli escreva: "Conhecer Kelsen é aprender muito sobre o Brasil, sua Federação e o modo como nossas instituições, inclusive o Supremo Tribunal Federal, são organizadas." Acho que é imperioso superar Kelsen. Mas, no Brasil, que aquelas instituições - inclusive o STF - ao menos chegassem aos padrões filosófico-jurídicos do jurista austríaco, já seria um avanço gigantesco.

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