O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Marcha do Estado Laico: a defesa da igualdade e do pluralismo



Ocorreram jornadas pelo Estado laico no Brasil neste domingo, dia 21 de agosto de 2011. Participei da de São Paulo, que se deu em um tempo frio com ventania. No entanto, pessoas saíram de casa para esta nova marcha democrática, que se seguiu à do dia anterior, de protesto contra Belo Monte. Nela, índios queimaram ritualmente um boneco que simbolizava a presidenta do Brasil.
Tirei fotos antes de ela começar, e poucas durante o percurso da Praça do Ciclista à Praça Oswaldo Cruz, porque estava ajudando a carregar faixas.
A faixa do resumo do artigo 19 da Constituição, que fotografei antes de a Marcha começar, serviu como frontispício da manifestação, atrás de uma personificação da Inquisição. Eis o texto constitucional:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
II - recusar fé aos documentos públicos;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Trata-se do poder público: isto não significa que os cidadãos não possam participar desses cultos ou subvencioná-los - eles, nós, temos o direito de fazê-lo; mas, para que o possamos exercer livremente, o Estado não deve, ele mesmo, adotar um culto religioso. Trata-se de assunto da ordem privada, como defendeu Locke nas famosas Cartas sobre a tolerância.
O direito brasileiro já foi muito diferente, como se sabe; mencionarei nesta nota apenas algumas dessas diferenças.
Como herança do Antigo Regime português, a Constituição de 1824, a primeira do Brasil, outorgada por Dom Pedro I em nome da "Santíssima Trindade", dispunha que havia uma religião oficial:

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.

Não havia, pois, liberdade de culto: as outras religiões deveriam ser escondidas, mesmo em termos arquitetônicos, para serem toleradas.
O próprio chefe de Estado deveria jurar defender aquela religião:

Art. 103. 0 Imperador antes do ser acclamado prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento - Juro manter a Religião Catholica Apostolica Romana, a integridade, e indivisibilidade do Imperio; observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e mais Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber.

Art. 106.0 Herdeiro presumptivo, em completando quatorze annos de idade, prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento - Juro manter a Religião Catholica Apostolica Romana, observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e ser obediente ás Leis, e ao Imperador.

Trata-se de uma época - a monarquia - em que não se conseguiu instituir o casamento civil; dessa forma, um casamento realizado no Brasil, para ter validade jurídica, deveria ser celebrado por um padre católico. Dessa forma, casamentos aqui feitos por sacerdotes de outras religiões não eram reconhecidos (casamentos no estrangeiro poderiam sê-lo, no entanto).
A união entre Estado e Igreja representava um grave obstáculo à liberdade de culto. Os membros do Conselho de Estado também deveriam prestar aquele juramento. Havia uma restrição ainda mais grave, no entanto, aos direitos políticos:

Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores são habeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.
II. Os Estrangeiros naturalisados.
III. Os que não professarem a Religião do Estado.

Trata-se de uma restrição importante aos direitos políticos, que visava impedir que um parlamento que, eventualmente, não tivesse maioria católica, pudesse mudar a Constituição e a religião oficial (nota: no portal da Presidência da República, que é uma fonte muito usada de pesquisa de legislação, esse artigo está truncado). A medida antidemocrática é típica de Estados onde não há separação entre Igreja e Estado.
Curiosamente, a Constituição de 1824 previa também isto:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[...]
V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica.

As condições do inciso V quase anulavam a suposta proteção a quem não fosse católico apostólico romano: afinal, a "ofensa à moral pública" era algo tão amplo que poderia incluir a restrição aos direitos políticos... O texto, pois, simultaneamente enuncia um direito e sua possibilidade de supressão pelo Estado.
Pimenta Bueno (ou Marquês de São Vicente), em um dos momentos clássicos de nonsense constitucional a serviço do poder no Brasil, escreveu, comentando esse inciso V:

Nossa disposição constitucional não só garantiu uma justa tolerância, mas concedeu a liberdade essencial, o culto não só doméstico, mas mesmo em edifícios apropriados e para isso destinados, não devendo somente ter formas exteriores de templos.
Essa liberdade é tanto mais preciosa quanto é certo que uma das primeiras necessidades do Brasil é a de uma numerosa colonização [...]

Não é necessário citar mais: Pimenta Bueno está de olho no imigrante protestante, e ousa defender que o Estado católico brasileiro respeitava a "liberdade essencial" de culto.
Esses imigrantes puderam notar que não havia esse respeito no Império brasileiro.
No tocante à Constituição de 1988, o artigo 19, de fato, é explícito em relação à laicidade. No entanto, ela não está presente apenas no que está explícito, mas em diversas medidas, e a menor não é o próprio princípio da igualdade: um Estado que toma um partido religioso discrimina os cidadãos que não compartilham da fé oficial.
O pluralismo político, fundamento da República segundo o inciso V do artigo 1º, é também incompatível com a adoção, pelo Estado, de uma doutrina religiosa - que também será política, pois teocrática. A promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", um dos objetivos fundamentais da República (inciso IV do artigo 3º), também colide com a adoção de uma religião pelo poder público: o privilégio de um culto incorrerá em discriminação dos outros cultos, bem como dos ateus.
Pode-se, no entanto, dizer que a laicidade decorre do próprio princípio democrático. Ou seja, o artigo 19 não resume a questão em termos constitucionais. E a constituição não a resume em termos jurídicos - pois há o direito internacional dos direitos humanos...

P.S.: Sugiro que leiam, no blogue de Marcelo Semer, o voto solitário, no Conselho Nacional de Justiça, que Paulo Lôbo proferiu em favor da retirada de símbolos religiosos nas salas de sessões e audiências do Judiciário brasileiro.

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