No acervo do DEOPS/SP, podem-se ler vários e vários recortes de reportagens estrangeiras sobre o Brasil. Notícias brasileiras que tratavam da percepção de estrangeiros sobre o Brasil também eram guardadas.
Um desses recortes foi de matéria do Jornal da Tarde de 23 de julho de 1970, "O que se fala do Brasil no externor: Em alguns países, a imagem do Brasil não é boa: continuam as acusações ao govêrno. E o presidente Médici está preocupado com isso".
Conta-se nela que Médici recebeu em Brasília os participantes do I Colóquio Internacional de Direito Romano, Língua e Literatura Latina e declarou-lhes que "Não há homem, não há ser humano que não goze nesta terra de toda aquela liberdade a que ele tem direito." Solicitou aos estudiosos que retornassem a seus países com essa imagem do Brasil, a da "liberdade"! Wandick Londres da Nóbrega, presidente do Colóquio, afirmou ter explicado aos participantes que nenhum brasileiro precisava de buscar a liberdade em outro país - exceto aqueles que a queriam destruir no Brasil...
O que parece ter interessado especialmente às autoridades policiais, no entanto, foi o trecho destacado à mão em que se contava da prisão do médico que havia reunido provas de que Olavo Hansen tinha sido assassinado por agentes do DEOPS. A advogada Eny Raimundo Moreira (uma das fundadoras do Comitê Brasileiro pela Anistia - vejam o vídeo em que ela explica a criação do projeto Brasil Nunca Mais), que trabalhava no escritório de Sobral Pinto, informava que havia apresentado uma petição ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em favor do médico.
Como se sabe, o caso de Olavo Hansen acabou gerando procedimentos internacionais contra o Brasil. O governo fez o possível, em termos de chicana e politicagem, para freá-los; conseguiu-o na OIT, mas não na OEA. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos acabou por condenar o Estado brasileiro, que ignorou completamente a decisão.
Estudei, na tese, como o desprezo pelo direito internacional dos direitos humanos havia permanecido no Brasil após a democratização, mesmo com diversas mudanças políticas e institucionais que ocorreram. É possível verificar essa continuidade autoritária na jurisprudência - foi o que fiz - mas também por outros métodos. Estudos dos vários órgãos ligados Poder Executivo possivelmente revelariam o mesmo quadro.
Afinal, o Executivo, depois de 1988, continua a desprezar decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Um caso foi da lei de anistia, em que houve colaboração do Judiciário brasileiro para a impunidade. Mas também seria interessante estudar o IBAMA.
Esse Instituto, aprofundando o desprezo oficial ao direito brasileiro e ao internacional, concedeu, em 1° de junho, licença para as obras de Belo Monte (tecnicamente, trata-se da licença de instalação nº 795/2011 para o aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte) apesar de quarenta por cento das condicionantes previstas pela licença prévia (de número 342/2010) não terem sido cumpridas. O consórcio Norte Energia, em momento de grande criatividade da engenharia brasileira, elencou obras inexistentes de saúde e educação, o que foi percebido até pelo IBAMA, que reconheceu o não cumprimento das condicionantes.
O Ministério Público Federal (mais preocupado com a imagem exterior do Brasil do que o Poder Executivo), diligentemente, propôs ação civil pública contra essa nova ilegalidade. Na petição inicial, destaca as questões da qualidade da água e do saneamento, irresolvidas.
Não havendo como negar o não cumprimento da condicionante, o IBAMA, no RPL, inverte completamente a lógica. Ressuscita a máxima de privatizar o lucro e socializar os custos, ao declarar:
“51. Há ainda que se considerar que a responsabilidade pelos
serviços de saneamento é do Poder Público - governos estaduais
e municipais. Os principais municípios da região (Vitória do
Xingu e Altamira) apresentam, atualmente, situação precária
em relação ao saneamento básico: inexistência de esgotamento
sanitário e sistema de abastecimento público de água precário.
Isso posto, ainda que a responsabilidade da NESA diga respeito
somente aos impactos causados pelo empreendimento, restou
estabelecido no licenciamento que o empreendedor deve
implantar integralmente os sistemas de abastecimento público
de água e de esgotamento sanitário, em toda a área urbana
desses municípios, cobrindo um importante déficit préexistente.”
Por essa lógica, diante da pobreza da região, a NESA deveria se preocupar apenas com o impacto que causar pelos seus operários. Não deve haver qualquer compromisso ou dividendo da empresa para a comunidade local que suportará impactos como a contaminação de sua água.
Nada mais colonialista. Esse pensamento ajuda a compreender a diferença econômica e social entre as regiões do Brasil, que a Constituição da República Federativa do Brasil visa a combater em seu art. 3º, inciso III e demonstra a miopia na condução do licenciamento, que parece transformar o ônus da decisão da NESA em construir um imenso empreendimento na região em um favor, uma benemerência com a sociedade local, desprezando o impacto da atividade, em situação que desconsidera todo o arcabouço constitucional sobre o tema.
Creio que o Ministério Público Federal acerta na mosca ao mencionar a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos que, na verdade, não se limitam a custos financeiros, pois envolvem a degradação ambiental e destruição de comunidades, de culturas e formas de vida. Isso é irreversível e não pode ser quantificado - em geral, o mais valioso é incalculável. Talvez seja um problema de recusa à alteridade que mentes tecnicistas não compreendam valores que não possam ser depositados em contas bancárias.
Se alguém ainda tinha dúvida das intenções do IBAMA, o seu diretor, Curt Trennepohl, dissipou-as quando deixou claro, para a tevê australiana, que seu papel não era cuidar do meio ambiente, e que os brasileiros farão com os índios o mesmo que foi feito com os aborígenes na Austrália. Ele é servidor do órgão e advogado na área ambiental (não li seus livros, não sei se neles tenta justificar juridicamente o extermínio de povos, como ocorreu com os aborígenes), o que deve despertar sensações peculiares para a "comunidade jurídica" brasileira. Não surpreende que a entrevista reveladora tenha sido dada no exterior, uma vez que a tevê brasileira não está, de modo geral, comprometida com o meio ambiente e com os povos indígenas.
Imagino que a presidenta Dilma Rousseff deva ter apreciado tais declarações, já que ele segue no cargo.
No caso, creio que o Ministério Público deveria verificar se se planeja o crime de genocídio, especialmente no tocante a esta previsão da lei federal nº 2889 de 1956:
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
[...]
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
Belo Monte deverá gerar tais condições de inexistência para as comunidades locais, especialmente as indígenas. O artigo primeiro dessa lei reproduz a previsão do artigo 2º da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, da ONU. Trata-se, no Brasil, de crime hediondo, segundo o parágrafo único do artigo da lei federal federal nº 8072, de 1990. Além da justiça federal brasileira, o Tribunal Penal Internacional é competente para julgar esse crime.
Lembro também que é crime de responsabilidade do Presidente da República, segundo a lei federal nº 1.079, de 1950:
Art. 5º São crimes de responsabilidade contra a existência política da União:
[...]
11 - violar tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras.
O direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional ambiental estão sendo violados neste caso, o que inclui até mesmo Convenções da Organização Internacional do Trabalho!
Eduardo Sterzi havia comentado que o mesmo IBAMA que concedeu licença a quem não cumpriu os requisitos legais cancelou a que havia dado a Nuno Ramos para expor urubus na obra Bandeira branca, apesar de o artista ter cumprido todos os requerimentos necessários.
Um fez arte; quanto ao outro, planeja lucrativa (para poucos) destruição (para todos). É fácil descobrir de que lado está o governo federal.
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