Em 2004, enviei o texto, que só foi publicado, depois de dois alarmes falsos, em 2009. Como tive que reescrever e diminuir, em razão do número de caracteres, não gosto de relê-lo (não lembro quando fiz isso pela última vez - na verdade, não gosto de reler-me, há tantas outras coisas para estudar...): dá-me a incômoda vontade de transformar cada parágrafo em um capítulo novo.
Em regra, não me interesso muito pelo que já fiz, o que foi uma das razões para ter demorado a responder quando Alexandre Nodari me pediu uma entrevista, há pouco publicada no Sopro, numa edição que me deixou feliz, pois estou com meu pintor favorito e um de meus poetas preferidos - imagino que Nodari teve que compensar a presença do meu texto com esses pesos-pesados!
Não obstante o caráter modesto do livro, quis responder porque achei que seria uma tarefa de professor: tentar ensinar e esclarecer, talvez mais eficaz do que as tentativas que faço com alunos que institucionalmente me cabem na faculdade de direito.
A questão da multiplicidade das fontes e a outra, que é a dos usos do direito, em regra é profundamente recalcada nas faculdades de direito e, muitas vezes, ignorada em outras regiões da Academia.
Outro problema é reduzir o direito à jurisprudência: grande parte da aplicação das normas jurídicas simplesmente não passa pelo Judiciário. Felizmente, por sinal; se toda a vida do direito dependesse desse Poder, ele estaria como o paciente que morreu no dia 3, mas terá marcada no dia 30 sua operação para o dia 28 do mesmo mês, data em que o médico não aparecerá.
No exemplo que cito, da Favela Santa Marta, o paciente decidiu viver a despeito das instituições, e só poderia fazê-lo dessa forma.
Estudei a dimensão local do direito no mestrado, e a global no doutorado. Normalmente, combino-as. Nos idos de 2009, fizeram-me uma pequena entrevista com a indagação de que, se os direitos humanos eram invocados no Iraque, isso não mostraria sua inutilidade e falta de universalidade? Parece-me bem o oposto; a situação no mundo islâmico hoje trouxe novos elementos, e as perguntas que Nodari me fez permitiram-me falar mais da questão.
Quero, porém, falar de outra coisa: Vinícius Nicastro Honesko, nesse número do Sopro, traduziu uma fala improvisada em francês de Murilo Mendes. O improviso é visível, não há realmente um desenvolvimento de ideias, mas há passagens:
A distinção entre a poesia dita gratuita e a poesia “engajada” não tem muito mais de sentido já que o poeta, a partir o momento em que toma consciência de sua condição de poeta, está “ex-officio” engajado no drama humano e, de todo modo, evidentemente, no drama da linguagem, que é aquele do homem.
No poema "Conhecimento", de A poesia em pânico, Murilo diz "Sou a fome de mim mesmo e de todos,/ Sou o alimento dos outros" e termina com "Sou a própria esfinge que me devora". O poeta oferece sua fala, que se incorpora aos ditos e aos silêncios da sociedade, e pode alterá-los. Essa é sua fome (e a dos outros), da qual ele e os outros se alimentam. Mais tarde, em Convergência, ele lançaria murilogramas para os mais diversos destinatários. E Orfeu, mesmo "Lacerado pelas palavas-bacantes", "Impede mesmo assim sua diáspora/ Mantendo-lhes o nervo & a ságoma."
Quem o devora? Ele se oferece a todos: "Orfeu Orftu Orfêle/ Orfnós Orfvós Orfêles". Não se trata propriamente de um direito do autor, mas de um dever.
Muito diferentemente, no mau poeta engajado, aquela dicotomia logo se percebe (há compromisso social, mas não a formalização artística necessária), assim como no mau poeta "puro" ou "gratuito" (em que não há nenhum dos dois). Nos dois casos, os poetagramas não se constituem.
Isso fez-me lembrar a leitura que Rancière fez do político em Mallarmé. Claro que, se Mallarmé fosse mau poeta, o político faltaria, assim como a poesia. E o poeta francês não teria brinde algum para oferecer a nossa sede: nem solidão nem recife nem estrela.
De alguma forma, quando lançamos um livro, investimos naquela fome ou sede - nossas e do outro.
P.S.: Perto do final da entrevista, faço uma concordância atrativa (perfeitamente legítima) que uma pessoa estranhou, mas é assim mesmo: " A evocação dos direitos humanos nas revoltas atuais no Oriente Médio parecem-me confirmar essa tese" É claro que prefiro concordar com esses direitos, e não conjugar o verbo segundo uma simples evocação.
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