Ignoro se se trata realmente da minha hipótese de terror de Estado ou se estamos diante de ensaios de uma forma alternativa, com mais substância do que simples fogos de artifício, de comemorar as eventuais vitórias na próxima copa do mundo de futebol masculino.
Estive no Rio de Janeiro até esta quarta-feira. Depois de atravessar a Antonio Carlos me perguntei: o instituto jurídico da terceirização deveria ser enquadrado, em termos políticos, na categoria do Terror? Os bueiros que pegam fogo e explodem suscitaram-me a estranha dúvida.
A Rua da Assembleia, ironicamente, está há mais de dois dias interditada. Técnicos não acham problemas em alguns dos pontos onde houve explosões; a questão, aparentemente, é sistêmica, e não de simples defeitos localizados. A Light, companhia privatizada que terceirizou suas equipes técnicas, está a fazer a cidade literalmente explodir, sob os olhos semicerrados da agência reguladora, ANEEL e de outras autoridades.
A privatização vem sendo acompanhada desse tipo de precarização das relações de trabalho, que afeta a qualidade dos serviços públicos. Por sinal, há muito tempo o próprio poder público vem terceirizando vários serviços que são atividades-meio.
O resultado, em geral, é a negação dos direitos sociais, o que vem gerando paralisações aqui e acolá, como esta última na USP.
Uma questão é a da responsabilidade do poder público. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidia que o poder público tinha responsabilidade subsidiária nesses casos, o que gerou a súmula 331 do TST, que afastava o parágrafo 1º do artigo 71 da Lei 8666/1993 ("§ 1o. A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.")
O Supremo Tribunal Federal, na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16, decidiu que o artigo referido da Lei n. 8666/1993 é constitucional. No entanto, ainda poderá ocorrer a responsabilidade subsidiária do poder público:
“O STF não pode impedir o TST de, à base de outras normas, dependendo das causas, reconhecer a responsabilidade do poder público”, observou o presidente do Supremo. Ainda conforme o ministro, o que o TST tem reconhecido é que a omissão culposa da administração em relação à fiscalização - se a empresa contratada é ou não idônea, se paga ou não encargos sociais - gera responsabilidade da União.
O TST modificou, em seguida, a súmula 331 para adequá-la ao entendimento do STF.
Outra questão, que afeta mais gravemente, creio, a qualidade dos serviços públicos, é a da extensão da terceirização - que tipo de atividades ela pode englobar? As leis de concessão têm sido extremamente favoráveis aos interesses das empresas.
Seria, porém, um preconceito esquerdista ver prejuízos na terceirização? Um preconceito que decorre da falta de leitura de livros tão profundos quanto a "Comendo a concorrência: Antropofagia e Oswald de Andrade para executivos"; "Você é uma exceção: Agamben e o mundo corporativo"; "Você pode chegar parangolá: o método Oiticica de gestão empresarial" etc.? Criei estes títulos em homenagem a meus amigos antropófagos.
Não! O próprio presidente da Light (que não é um radical da extrema-esquerda), o senhor Jerson Kellman, afirmou que seria responsabilidade dos terceirizados a explosão de diversos bueiros no Rio de Janeiro.
Trata-se de uma forma aparentemente torpe de transferir responsabilidade: a companhia optou por essa forma de precarização do trabalho, que fez com que haja equipes compostas não só de técnicos que não dominam tecnicamente seu trabalho, mas de criminosos que furtam os equipamentos e os revendem.
A companhia optou e lutou na Justiça para manter essa precariedade lucrativa. Quem permitiu essa terceirização dos serviços técnicos? O Ministro do STF Gilmar Mendes, concedeu liminar favorável à Vivo, monocraticamente (isto é, ele sozinho), em 9 de novembro de 2010, na Reclamação n. 10132:
DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada por Vivo S.A. Empresa de Telecomunicações contra ato da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho que, nos autos do Recurso de Revista n. 6749/2007-663-09-00, teria descumprido a Súmula Vinculante 10 deste Supremo Tribunal Federal, ao afastar a aplicabilidade do art. 94, II, da Lei n. 9.472/1997.
Referido dispositivo estabelece que a concessionária de serviço de telecomunicações poderá, observadas as condições e os limites estabelecidos pela agência reguladora, contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados.
A decisão reclamada foi proferida por órgão fracionário do Tribunal Superior do Trabalho e afastou a incidência do referido dispositivo, fundamentando-se no enunciado 331, III, daquela Corte, [...]
Verifico que, enquanto a Súmula 331, III, do TST limita a possibilidade de terceirização à atividade-meio das empresas de telecomunicações, o art. 94, II, da Lei n. 9.472/1997 permite a contratação com terceiros para o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares.
Em um juízo sumário de cognição, os termos utilizados não parecem ser sinônimos, o que evidencia a existência de fumus boni juris que justifica a concessão da medida liminar pleiteada.
Esse entendimento é reforçado por outras decisões recentes do Tribunal Superior do Trabalho cujo entendimento é contrário ao do acórdão ora questionado, dentre as quais cito o RR 13400-51.2009.5.03.0004, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, DJe 22.10.2010; o RR 106040-34.2009.5.03.0114 , Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, 2ª Turma, DJe 8.10.2010; e o RR 160100-28.2008.5.03.0134 , Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, DJe 15.10.2010, [...]
Ademais, reconheço que a decisão reclamada pode acarretar graves prejuízos de difícil reparação ao Reclamante, além de estar fundamentada em ato normativo cuja incerteza quanto à efetividade tem gerado insegurança.
Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar para suspender os efeitos do acórdão proferido pela Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho proferida nos autos do Recurso de Revista n. 6749/2007-663-09-00 até o julgamento final desta reclamação.
A Vivo lutava na Justiça do Trabalho para que a terceirização do call center fosse considerada regular. Não conseguiu no TST, e sim no STF. Quais eram os "graves prejuízos de difícil reparação"? Cumprir a lei trabalhista...
À vista disso, a Light conseguiu que fosse julgada procedente outra ação referente à terceirização, na 8a. Turma do TST. Nessa ação, o Ministério Público do Trabalho levantou que a Light demitiu mais da metade de seus funcionários. Não admira que a cidade exploda.
Voltando à minha indagação inicial; seria a Terceirização, nesse contexto de aniquilação dos direitos sociais apoiada pelos três Poderes do Estado (o STF, Tribunal que historicamente aplica mal o direito do trabalho - na minha tese tratei um pouco disso - não tem servido de contraponto eficaz aos abusos contra esses direitos), uma forma de Terror? Há pontos em comum:
a) A Terceirização, assim como o Terror, marca-se pela indeterminação das vítimas - o efeito deve ser o da insegurança geral: a bomba ou o bueiro podem explodir em qualquer parte, o que deve preocupar a população civil;
b) A destruição dos espaços públicos, pelo Terror e pela Terceirização, gera o temor do encontro nos logradouros - deve-se atingir o próprio ânimo associativo, o que é uma forma de ferir politicamente a comunidade - a assembleia dos cidadãos deve ser fechada, o que se verificou agora com a interdição da Rua da Assembleia;
c) As ações do Terror e da Terceirização são imprevistas, sem o que o pânico geral não é alcançado: as forças subterrâneas poderão aclodir a qualquer momento, trazendo a insegurança para toda a sociedade.
A Terceirização seria, pelo menos neste caso, uma espécie de Terror de Estado? Creio que sim, pois as explosões ocorrem em um serviço público, embora na mão de agentes privados. O fato de esses agentes o operarem não retira, a meu ver, a responsabilidade estatal. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já afirmou, por exemplo, a responsabilidade internacional do Estado por crimes cometidos por paramilitares (como o caso dos massacres de Ituango, contra a Colômbia).
No caso da Light, trata-se de uma categoria nova: o Terror involuntário de Estado. A imaginação política no Brasil é infinita.
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